Quando vou realizar um check-up -- imperioso depois dos 40 mil quilômetros rodados [já estou na casa dos 55 mil] -- um pensamento recorrente me toma de assalto. O preparo impõe restrições que me fazem, quase sempre, lembrar de coisas boas da vida. Para o exame completo de sangue e PSA [bom dia, próstata, tudo bem aí?], aquela checadinha básica, é exigido jejum de 12 horas, sem esforço físico na véspera, 72 horas sem bebida alcoólica e 48 horas sem sexo. Mesmo que passe rápido, é duro se abster de tudo. Foi assim ontem, uma quarta-feira chuvosa na Paulicéia ingovernável. Se no mesmo dia você der uma geral no abdome, além do jejum de 8 horas, terá que tomar seis copos de água antes do ultrassom [bom dia, vesícula, em que pé estão os pólipos? São cinco, grandes, pequenos, estagnados? Estou de olho em vocês! E a bexiga, vai bem obrigado! E o fígado e os rins, mudaram de tamanho? Estão filtrando direitinho?].
Já para fazer uma breve visita ao coração, na sexta que vem, a ordem é não tomar café [dizem que é um veneno, mas adoro um puro], chocolate ou achocolatados [é melhor nem comentar], qualquer tipo de chá, refrigerantes [e seu açúcar adorável, viciante] e bebidas alcoólicas [hoje estou moderado, o medo da ressaca venceu a esperança]. Pior, temo dar vexame na esteira, não atingir o protocolo mínimo. Se não me engano, são 7 ou 8 minutos (es)correndo na ladeira. Que vergonha, já cheguei a parar só após 12 minutos, o tempo máximo [quem mandou não caminhar 30 minutos por dia? Ou nadar duas vezes por semana, para garantir um fôlego razoável?]. A humilhação se completa se esse teste de esforço for monitorado por jovens enfermeiras [vou ter que dizer que eu já fui “uma brasa, mora!”].
A esses pensamentos imperfeitos seguem-se outros, que aliviam um pouco a barra deste “bokomoko”. Soube que essas jovens enfermeiras ou médicas, novatas na profissão, já salvaram vidas. Uma vez um sujeito, aparentemente em perfeito estado de manutenção por dentro e por fora, corria na esteira. Uma das jovens de branco achou esquisito o gráfico do ritmo cardíaco. Chamou um médico, que de imediato decretou: “Pode parar, você está próximo de um ataque cardíaco”. Surpreso, o sujeito, de meia idade, perguntou se podia buscar em casa uma muda de roupas. O médico foi no fígado: “Daqui você só sai de ambulância”. Pobre homem, com a lataria em dia, mas com o motor pronto para fundir sem ele saber, sem nenhum sinal. Foi internado. Por outro lado, que sorte. As meninas fizeram o trabalho direitinho. Ele era daqueles que participa de corridas de rua em busca da resistência e da virilidade juvenil perdidas [ou por ser viciado em endorfina e outras “inas” que nos enchem de prazer e dão a sensação ilusória de ser um super-homem].
Essa revisão não-programada puxa o fio do novelo de outro pensamento, e arranca de mim um leve sorriso, apesar do desfecho trágico. Soube que um “tio”, padrasto de um velho e saudoso amigo de colégio, cumpriu sua missão por essas terras com a honra de quem vai até o rabo da palavra. Generoso, engraçado, culto, companheiro, advogado e um debatedor ágil das belezas e dos pecados do mundo, adorava tomar um bom uísque escocês. Fez questão de tomar sua penúltima dose no leito hospitalar. Admirável. Inesquecível. Dele ganhei o apelido provisório de “Calígula, o devasso”, pelos trejeitos ao dançar com as moças no salão, em um memorável carnaval em Birigui [o filme sobre o imperador de Roma estava em cartaz e havia celeuma em entorno das cenas explícitas]. Quase um ano depois, fui surpreendido pelo sócio dele [que esteve na festa interiorana do rei momo] num elevador cheio na Avenida Paulista. “Ooooiiiii, Calígula! Como você está?!!!!”. Todos olharam para mim. Eu não sabia onde enfiar a cara. “Tudo bem”, respondi meio encabulado -- embora contente pelo reencontro e pela lembrança do apelido que achava esquecido, coisa do passado. Eu tinha 19 anos.
Esse turbilhão de pensamentos desordenados me veio à cabeça em frações de segundo, enquanto conversava com uma amiga -- ela no check-in do Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e eu em casa, em São Paulo. Ela contava que um atendente acabara de lhe dizer na lata: “O aeroporto está fechado e seu embarque será SDS”. Diante do espanto com a sigla desconhecida, o funcionário da empresa aérea não titubeou: “Só Deus sabe”. Era bem cedo, gargalhei. Fui correndo fazer o check-up. Tinha hora marcada. O resto, SDS.
[se gostou, compartilhe ou dê "share"]
Nenhum comentário:
Postar um comentário