sábado, 30 de janeiro de 2016

O GUARDA-CHUVA



        Era a primeira vez que se viam frente a frente. E foi um desastre. Ela não gostava daquela comida francesa. O bistrô, escolhido por ele a dedo por considerar o lugar ideal para um jantar romântico, só servia pratos de caça. Constrangido, o rapaz tentava contornar a situação. Já havia pedido um bom vinho de mesa. Nada parecia engrenar, exceto o desejo de conhecer aquela mulher com quem conversara horas a fio pelo whatsapp, esse vício moderno, durante dias, ao estilo nunca te vi sempre te amei. Era tarde e o rapaz, vacilante, decidiu ficar ali, não tentar outro restaurante. Ele ainda encomendou uma torta de queijo, ao vê-la beber vinho tinto sem colocar na boca um pedaço sequer de pão. Embora o encontro tenha se sustentado por minutos de conversa divertida, aguda, estava resignado com o ''não-jantar". Já se dava como abatido pela mesa errada, pela escolha infeliz.
     
        Recém-solitários, os dois falavam sobre viver o momento, sem que isso significasse abandonar sonhos e desejos futuros. E como viviam isso, não só da boca pra fora, como acontece com muita gente que costuma alardear tal comportamento como qualidade adquirida ao longo da vida.  Até que a mulher pediu licença e se levantou para ir ao banheiro. O rapaz percebeu que não estava bem. Pediu a conta e pagou-a enquanto a moça tentava se recompor. Quando saiu do restaurante, abriu o guarda-chuva porque chovia, pouco. Mas chovia. Levou-a, preocupado, até o carro. No caminho de volta, tentou socorrê-la com drogas, até parou numa farmácia, mas o que resolveu mesmo foi meia lata de coca-cola com paçoca. De volta à sua casa, entristecido, pensou: amanhã é tempo de pedir desculpas, educadamente lamentar, colocar a roupa de domingo e esquecer. Mais uma noite de luto viria.

       No dia seguinte, ele campeão de fiascos das primeiras noites, como ele se definia após tantos e sucessivos fracassos no primeiro encontro, foi surpreendido. Ela dizia que queria vê-lo de novo pela sua autenticidade, pelo seu jeito meio destrambelhado de ser, que a mulher não sabia ser resultante de uma deficiência [ainda que naqueles dias quase invisível] e pelo guarda-chuva. Sim, [ela revelaria mais tarde] aquele objeto antigo e quase obsoleto que ele levara e que -- meio atrapalhado ao entregar o carro ao manobrista ao chegar-- abrira para proteger aquela mulher das poucas gotas de água que começavam a cair naquela noite de casal debutante. Se a primeira noite para aquele  homem havia deixado a sensação do sabor amargo de um cabo de guarda-chuva, o mesmo guarda-chuva guardava outro gosto para aquela moça alta -- e, aos olhos daquele homem, de uma beleza singular. O gesto de abrir e fechar o guarda-chuva, uma atitude espontânea e despercebida pelo rapaz, tinha tido o peso de uma sentença judicial, sem direito a apelação, para a moça. Sim, nada tinha dado certo, mas o uso do guarda-chuva, ainda que exagerado para o momento -- porque até o toró fôra só uma tenra ameaça -- ganhou um significado único para aquela mulher: o gesto de quem cuida.

      Daí seguiram-se novos encontros dos debutantes e seguidas noites ferozes, nascidas de um amor que foi se nutrindo e se expandido, pelas semelhanças e também pelas diferenças inúmeras, na contramão desses tempos de cólera, indelicadezas e descuidos ilimitados s/a.

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