sexta-feira, 29 de maio de 2015

SE ESSA RUA DA FAVELA FOSSE MINHA...

 2006: crianças revistadas no Morro Dona Marta

[versão atualizada]

      O que é isso? pergunta um policial militar. "Balas 7 Belo", dispara o menino. O que é isso? "Uma pistola de água", explica outro garoto. O que há dentro desse estojo? "Só lápis de cor", exibe uma menina. Ok, estão todos liberados. O diálogo é inventado, mas "a geral" dada, por soldados armados com fuzis, em crianças de até 10 anos a caminho da escola aconteceu. A fotografia [acima] foi tirada em 2006 na entrada da favela no Morro Dona Marta, em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, onde as crianças aprendem desde bem cedo a lidar com as blitze. Ali, aprender o alfabeto é tão importante para as crianças quanto saber ficar comportado e em pé contra a parede -- mãos para cima e pernas abertas -- para serem revistadas.

      A imagem é chocante, reveladora da distorção no cotidiano carioca para olhos distantes. Ao vivo, é repugnante ver crianças tratadas como suspeitas de crime, O que será que se passou na cabeça delas, submetidas a tal humilhação? Não, você não está me entendendo, é que os traficantes usam meninos e meninas -- chamados de "aviões" -- para vender drogas [sim, onde o Estado não comparece o tráfico se estabelece]. Não, não, é você que não está me entendendo! Essa justificativa não para em pé [nos bairros de classe média há venda de drogas, mas a polícia não "dá uma geral" na porta das escolas -- nem nas redondezas. Muito menos em crianças de até 10 anos].

       4 de abril de 2015 - Moradores do Complexo do Alemão, aglomerado de 15 favelas na zona norte do Rio, protestam contra a violência e pedem paz, após a morte do estudante Eduardo de Jesus Ferreira, de 10 anos, e de outras três pessoas naquela semana. Eles caminham pela Estrada do Itararé, umas das principais vias do Complexo do Alemão e pedem o fim da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na comunidade. Policiais são acusados de matar o menino e as outras três pessoas em tiroteios com traficantes.

"Eu marquei a cara dele. Nunca vou esquecer o rosto do PM que matou meu filho. Quando corri para falar com ele, ele apontou a arma para mim. Falei,‘pode me matar, você já acabou com a minha vida"
Terezinha Maria de Jesus, mãe do garoto Eduardo, que morreu na porta de casa, baleado por um PM

       28 de maio de 2015 -  Depois de quase sete anos sem tiroteios e sem registros de homicídios, a comunidade do Morro Dona Marta viveu uma noite de intenso tiroteio entre traficantes e policiais, nas proximidades do Beco do Jabuti. Foram apreendidas drogas e armas. Foi no Dona Marta [na favela da "blitz infantil"] que ocorreu, em 19 de dezembro de 2008, a instalação da primeira UPP no Rio, a ideia de uma polícia parceira e amiga da comunidade. 

      As UPPs já foram tidas como um exemplo de ação bem-sucedida de "esvaziamento" do poder do tráfico nas favelas. O que mudou de 2008 para 2015? É o fim das UPPs?

   
                             2015: protesto após morte de garoto no Alemão
     

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segunda-feira, 25 de maio de 2015

LEMBRANÇAS DO CONFESSIONÁRIO

                                       
         Aquelas cabines de madeira maciça com cortinas de veludo vermelho escuro ou vinho dentro da igreja São Gabriel, que abrigavam padres, chamaram a minha atenção nos primeiros anos de contato imediato com a religião católica. Garoto, não entendia o que fazia uma pessoa ajoelhada, do lado de fora, cochichando algo para um pároco de batina preta, “escondido” no interior daquela estrutura. Com o tempo – quando já descobrira que aquilo era o local para a confissão dos pecados  – passei a observar os fiéis deixando o confessionário, voltando à nave principal do templo e, com a Bíblia ou um terço às mãos e os olhos fechados, rezando dois Pai Nosso, três Ave Maria e um Credo. Viria a saber mais tarde, ainda menino, que as orações repetidas na quantidade recomendada pelo clérigo faziam parte do sacramento da reconciliação, da purificação.

         A igreja era mesmo um lugar cheio de mistérios para este menino, uma fonte de medo e curiosidade. De ouvir falar, sabia que só depois da confissão poderia comungar, receber a hóstia consagrada, o “corpo de Cristo” [na minha imaginação infantil, a confissão funcionava como um detergente que deixava a alma 100% mais limpa, branca total, tirando até as manchas mais resistentes]. Diga-se antes de mais nada que para ter o direito à primeira comunhão era preciso submeter-se a três meses de catecismo -- curso onde fui apresentado à vida eterna e ao anjo da guarda [aquele que evitou o meu atropelamento anteontem]. Ali me disseram que já nasci “pecador”, ali me foram introduzidas todas as culpas, que precisavam ser expiadas durante a vida para poder subir aos céus depois da morte. Barra pesada, para uma criança.
       
          Eu ainda não tinha feito a primeira comunhão. Mas, intrigado, já me perguntava o que revelavam os pecadores ao sacerdote no confessionário. Eram realmente debilidades pessoais graves? Comportamentos horríveis? Se fosse hoje, seria o envenenamento do cão do vizinho que não parava de latir? Segredos de alcova, prazeres carnais impublicáveis com parentes? Traições ao cônjuge ou ao amigo? Os ganhos de dinheiro com corrupção? O assassinato de um sócio ou do amante da esposa? Carrego comigo desde a adolescência rebelde a sensação de que os sete pecados capitais [gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça e vaidade ou soberba] e os dez mandamentos dão conta de quase todas as fraquezas humanas, além da violência, muitas vezes selvageria primitiva, da humanidade.
       
         Por prever o absoluto sigilo sobre os relatos dos pecadores, o confessionário [imaginava] deveria ser um espaço para terríveis revelações. Desde cedo, porém, este menino percebeu que não é bem assim, que os pecados mais graves jamais são pronunciados ali. A vergonha e o medo da punição pelas leis terrenas, por eventual traição de um sacerdote que aceite a delação premiada, serve de barreira -- ainda que a igreja alardeie até hoje punir com a excomunhão o presbítero que revelar o dito em confissão. Além disso, mesmo que o fiel e o clérigo não vejam seus rostos, a identidade pode ser revelada pelo tom de voz, afinal o pecador é fiel ao santuário. Na verdade, mente-se muito no confessionário, é uma convicção. Assim, vi o hábito de frequentá-lo esvaziar-se desde a década de 1960. As cabines -- providas de uma “janela fechada” com pequenos furos entre o penitente e o confessor -- foram sumindo das igrejas, e com elas as pequenas culpas, os pecados inventados e, às vezes [cruz, credo!] os contos do vigário passados pelos fiéis pecadores.

         Ainda me lembro das confissões pueris que fiz ao padre. Que falara palavrões, que brigara com meus irmãos, que desobedecera minha mãe. Eram as minhas faltas, pelas quais buscava o perdão. Suspeito que o padre ficava frustrado ou aborrecido com minhas desinteressantes "maldades". Não estuprei minha prima, não assaltei um banco. Nenhuma adrenalina para o ouvidor. Ainda me recordo que, “limpo das impurezas”, ao receber a hóstia da mão do prior gostava quando a grudava no céu da boca: mordê-la jamais, porque, dizia a lenda, encheria minha boca de sangue. Fui ao confessionário pela última vez antes de completar os 10 anos, quando meus pais ainda tinham o hábito de ir à igreja sempre aos domingos. Depois, pioneiros no divórcio, viraram católicos não-praticantes. Eu também.
[meu pecado mais grave cometido, talvez seja ter ouvido durante uma missa toda, com o fone de ouvido e o rádio de pilha escondido no bolso, a vitória do São Paulo contra o Corinthians, por 3 a 1, na voz inesquecível de Fiori Gigliotti, aquele que dizia no início das partidas... "abrem-se as cortinas e começa o espetáculo". Esse eletrizante pecado, não confessei.]
     
         Nunca, portanto, confessei nada grave. Hoje, já um senhor colecionador de pecados [repetidos] e de erros [im]perdoáveis cometidos ao longo da vida, não vejo como me salvar indo ao confessionário. De peito aberto, ao ar livre, nem peço perdão. Li outro dia que um padre declarou que o confessionário não perdoa pecado algum, não perdoa ninguém: porque nos seminários ensina-se que o padre só perdoa a culpa ou a malícia do pecado, a pena ou o castigo ele não pode anular e cada um tem que cumprir. Então, não haveria o verdadeiro perdão. Dizem também que a confissão é um ato de humildade. Humildemente, então, confesso que vivi.


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sábado, 23 de maio de 2015

O DIA EM QUE A POLÍCIA AJUDOU O LADRÃO

                                          Mario: desespero de barriga vazia  


     Mario não tem trabalho fixo há onze meses e cuida sozinho do filho de 12 anos. Parece engolido por uma maré de infortúnios. Eletricista, ele perdeu o emprego com carteira assinada depois que a mulher sofreu um acidente grave e ficou internada por oito meses, em coma. Mario acompanhou o martírio de perto, diariamente. Com a alta médica, outra perda. A esposa, sem dinheiro, deixa o hospital e decide ir direto para a casa de outro filho, de outro casamento, para se recuperar das seqüelas. Abandonado, Mario vive de bicos, mas há dois meses não consegue nada. Sua rotina tem sido cuidar do garoto, que vai à escola de manhã.

     A geladeira está vazia. O último sinal de comida na casa é o saco de papel de um pão francês que o filho comeu antes de sair. Mario não come nada há dois dias. É inicio de mês, e ele vai, então, ao supermercado comprar banana, pão e carne. Na hora de passar no caixa, sabe que é insuficiente o valor que tem no bolso, 7 notas. Resolve esconder o pacote com dois quilos de carne na bolsa. As compras custavam 26 notas. Ele disfarça, mas as câmeras de segurança flagram o ato, aquele impulso que em segundos o transformou em ladrão. O dono do estabelecimento não aceita as explicações, chama a polícia e Mario é detido por tentativa de furto. Na delegacia, o homem passa mal ao saber que ficará preso, com fiança estipulada em 270 notas. Desmaia. Reanimado, conta sua história aos policiais e afirma que o filho ficará sem ter quem o cuide em casa. "A pior coisa que existe na vida é não poder alimentar o próprio filho", lamenta.

     O depoimento muda o ambiente na delegacia. “Dei-lhe 30 notas para pagar a carne e fui contar aos colegas o que estava acontecendo no plantão. Ficou todo mundo comovido, e logo um tirou 5 notas, outro 10, outro 20”, relata o policial civil. Uma agente paga sozinha a fiança. “A gente sabe que furtar não é certo, mas imaginei a minha filha passando fome. O que eu não faria nessa situação?”, especula. Quatro policiais levam Mario ao supermercado e compram arroz, feijão, macarrão, biscoito e outros produtos. Ao passar pela gôndola de higiene, um agente pergunta se ele tem pasta de dentes. Mario diz que não escovava os dentes com pasta havia um mês. “Pedimos que ele pegasse, então. Ele voltou com a menorzinha e mais barata. Brincamos, isso não dá nem para um dia, e pegamos logo cinco tubos, compramos sabonete e todo o resto”, conta outro policial. Mario é levado para casa. Diz não acreditar. Pede desculpas, não para de agradecer.
     
     Termina aqui a ficção.

     É tudo verdade. Mario é Mário Ferreira Lima, morador no planalto central, em Santa Maria, Distrito Federal. Eletricista desempregado preso após furtar dois quilos de carne para alimentar o filho em 12 de maio, ele recebeu ajuda da polícia após depoimento na 20ª delegacia do GamaOeste. Em 18 de maio, é contratado com carteira assinada pela Gois, empresa de construção civil de Valparaíso de Goiás. Salário: R$ 1.300, bem mais que os R$ 70 do Bolsa Família, programa social do governo. Como recebeu muitos alimentos depois que virou manchete, prometeu fazer cestas básicas e doá-las, porque “tem gente precisando”. Mário revelou a reação do filho. “Ele ficou triste. Eu pedi desculpa. Ele disse que sou tudo o que ele tem, e que não vai tomar como exemplo o que fiz.”.

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quarta-feira, 13 de maio de 2015

HÁ UM IMIGRANTE DENTRO DA MALA


 Abu, escondido em maleta com rodinhas

           Acordo, às 4h40, alta madrugada, fustigado pelo pesadelo. Sei lá por que dormindo vivia, como se fossem minhas, as emoções da saga trágica de milhares de imigrantes negros africanos que tentam atravessar o mar Mediterrâneo em busca da “salvação” no continente branco da União Européia. A maioria foge da fome e da falta de perspectiva em embarcações frágeis, lotadas por homens, mulheres e crianças [todos sedentos e famintos]. Centenas deles morrem afogados em naufrágios óbvios, previsíveis, logo após deixar a costa da Líbia ou, pior, a poucos quilômetros do tão sonhado solo europeu, às vezes minutos antes de o bote clandestino ser resgatado por uma guarda costeira qualquer do Primeiro Mundo. Os jornais já pouco falam, mas o Mediterrâneo é o novo mar vermelho, tingido pelo sangue dos imigrantes ilegais.

          Para inibir essa onda gigante de miseráveis que ruma para o Velho Continente, as autoridades européias passaram a defender ataques diretos aos novos navios negreiros. A rigor, são ações militares autorizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), com apoio de atiradores em helicópteros. O plano de líderes europeus para enfrentar o grave problema da imigração ilegal mal disfarça um provável banho de sangue -- quando poderão ser vistos dezenas de corpos de imigrantes clandestinos boiando nas águas do norte da África. Alguém acredita que os barcos dos traficantes de gente não tentariam todo tipo de manobras para escapar?

        “Terra à vista!”, pode-se dizer, é a exclamação que simbolizou o pontapé inicial dado há 500 anos à chamada Era do Descobrimento, período em que os europeus ocuparam novas terras, dizimaram outras civilizações, devastaram florestas (levando quase à extinção, por exemplo, a árvore que batizou o Brasil), saquearam riquezas naturais. E fizeram tudo isso por meio da escravidão, usando mão de obra negra, acorrentada nos porões das caravelas e trazida da África para a América. Mas a diáspora negra promovida pela colonização deixou sequelas e consequências até hoje.
 
         "Terra à vista” poderia ser a exclamação de esperança para milhares de africanos que tentam chegar à Europa atualmente. Mas a mais recente onda de imigração mostra que a União Europeia enfrenta um desafio sem precedentes. E não há cama para tanta gente. Quase 57.300 imigrantes ilegais chegaram no primeiro trimestre de 2015, número três vezes superior ao registrado no mesmo período de 2014, ano em que foram quebrados todos os recordes, inclusive os atingidos durante as “primaveras árabes” -- quando vários ditadores foram derrubados por revoltas populares. Simplesmente deter os barcos de imigrantes não acaba com o problema. Para complicar, a ascensão de partidos contrários à imigração se espalha não só pela Europa rica (Grã-Bretanha, França e Alemanha). A Bulgária, por exemplo, quer construir um muro de 150 quilômetros de extensão para conter a imigração vinda da Turquia.

         O caso do menino Abou, ocorrido há uma semana, parece ser o retrato emblemático do problema migratório europeu. Natural da Costa do Marfim, o garoto, de 8 anos (foto acima), foi encontrado por agentes da Guarda Civil espanhola dentro de uma mala de rodinhas no posto de fronteira de Tarajal, entre o Marrocos e Ceuta, norte da África. Abou era levado por uma jovem marroquina que tentava entrar a pé no território espanhol. Ela foi detida. Uma hora depois, o pai do menino, de 42 anos, que tem visto de residência espanhol e mora nas Ilhas Canárias, foi preso. Ele é acusado de tráfico humano: teria pago à marroquina para trazer ilegalmente seu filho para a Espanha. A "mala do desespero", inédita para a polícia de fronteira, não tinha furos para o garoto respirar.

        Os números estão na mídia e fazem qualquer mortal perder o sono. Hoje, 56,1 milhões de estrangeiros vivem no continente europeu, 7,7% da sua população, incluindo 9,2 milhões de refugiados. Documento da ONU diz que o tráfico de pessoas, entre 600 mil e 800 mil por ano, virou um negócio muito rentável, proporcionando 8,2 bilhões de euros anuais aos traficantes. Vou tentar voltar a dormir.

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