segunda-feira, 25 de maio de 2015

LEMBRANÇAS DO CONFESSIONÁRIO

                                       
         Aquelas cabines de madeira maciça com cortinas de veludo vermelho escuro ou vinho dentro da igreja São Gabriel, que abrigavam padres, chamaram a minha atenção nos primeiros anos de contato imediato com a religião católica. Garoto, não entendia o que fazia uma pessoa ajoelhada, do lado de fora, cochichando algo para um pároco de batina preta, “escondido” no interior daquela estrutura. Com o tempo – quando já descobrira que aquilo era o local para a confissão dos pecados  – passei a observar os fiéis deixando o confessionário, voltando à nave principal do templo e, com a Bíblia ou um terço às mãos e os olhos fechados, rezando dois Pai Nosso, três Ave Maria e um Credo. Viria a saber mais tarde, ainda menino, que as orações repetidas na quantidade recomendada pelo clérigo faziam parte do sacramento da reconciliação, da purificação.

         A igreja era mesmo um lugar cheio de mistérios para este menino, uma fonte de medo e curiosidade. De ouvir falar, sabia que só depois da confissão poderia comungar, receber a hóstia consagrada, o “corpo de Cristo” [na minha imaginação infantil, a confissão funcionava como um detergente que deixava a alma 100% mais limpa, branca total, tirando até as manchas mais resistentes]. Diga-se antes de mais nada que para ter o direito à primeira comunhão era preciso submeter-se a três meses de catecismo -- curso onde fui apresentado à vida eterna e ao anjo da guarda [aquele que evitou o meu atropelamento anteontem]. Ali me disseram que já nasci “pecador”, ali me foram introduzidas todas as culpas, que precisavam ser expiadas durante a vida para poder subir aos céus depois da morte. Barra pesada, para uma criança.
       
          Eu ainda não tinha feito a primeira comunhão. Mas, intrigado, já me perguntava o que revelavam os pecadores ao sacerdote no confessionário. Eram realmente debilidades pessoais graves? Comportamentos horríveis? Se fosse hoje, seria o envenenamento do cão do vizinho que não parava de latir? Segredos de alcova, prazeres carnais impublicáveis com parentes? Traições ao cônjuge ou ao amigo? Os ganhos de dinheiro com corrupção? O assassinato de um sócio ou do amante da esposa? Carrego comigo desde a adolescência rebelde a sensação de que os sete pecados capitais [gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça e vaidade ou soberba] e os dez mandamentos dão conta de quase todas as fraquezas humanas, além da violência, muitas vezes selvageria primitiva, da humanidade.
       
         Por prever o absoluto sigilo sobre os relatos dos pecadores, o confessionário [imaginava] deveria ser um espaço para terríveis revelações. Desde cedo, porém, este menino percebeu que não é bem assim, que os pecados mais graves jamais são pronunciados ali. A vergonha e o medo da punição pelas leis terrenas, por eventual traição de um sacerdote que aceite a delação premiada, serve de barreira -- ainda que a igreja alardeie até hoje punir com a excomunhão o presbítero que revelar o dito em confissão. Além disso, mesmo que o fiel e o clérigo não vejam seus rostos, a identidade pode ser revelada pelo tom de voz, afinal o pecador é fiel ao santuário. Na verdade, mente-se muito no confessionário, é uma convicção. Assim, vi o hábito de frequentá-lo esvaziar-se desde a década de 1960. As cabines -- providas de uma “janela fechada” com pequenos furos entre o penitente e o confessor -- foram sumindo das igrejas, e com elas as pequenas culpas, os pecados inventados e, às vezes [cruz, credo!] os contos do vigário passados pelos fiéis pecadores.

         Ainda me lembro das confissões pueris que fiz ao padre. Que falara palavrões, que brigara com meus irmãos, que desobedecera minha mãe. Eram as minhas faltas, pelas quais buscava o perdão. Suspeito que o padre ficava frustrado ou aborrecido com minhas desinteressantes "maldades". Não estuprei minha prima, não assaltei um banco. Nenhuma adrenalina para o ouvidor. Ainda me recordo que, “limpo das impurezas”, ao receber a hóstia da mão do prior gostava quando a grudava no céu da boca: mordê-la jamais, porque, dizia a lenda, encheria minha boca de sangue. Fui ao confessionário pela última vez antes de completar os 10 anos, quando meus pais ainda tinham o hábito de ir à igreja sempre aos domingos. Depois, pioneiros no divórcio, viraram católicos não-praticantes. Eu também.
[meu pecado mais grave cometido, talvez seja ter ouvido durante uma missa toda, com o fone de ouvido e o rádio de pilha escondido no bolso, a vitória do São Paulo contra o Corinthians, por 3 a 1, na voz inesquecível de Fiori Gigliotti, aquele que dizia no início das partidas... "abrem-se as cortinas e começa o espetáculo". Esse eletrizante pecado, não confessei.]
     
         Nunca, portanto, confessei nada grave. Hoje, já um senhor colecionador de pecados [repetidos] e de erros [im]perdoáveis cometidos ao longo da vida, não vejo como me salvar indo ao confessionário. De peito aberto, ao ar livre, nem peço perdão. Li outro dia que um padre declarou que o confessionário não perdoa pecado algum, não perdoa ninguém: porque nos seminários ensina-se que o padre só perdoa a culpa ou a malícia do pecado, a pena ou o castigo ele não pode anular e cada um tem que cumprir. Então, não haveria o verdadeiro perdão. Dizem também que a confissão é um ato de humildade. Humildemente, então, confesso que vivi.


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