sábado, 25 de julho de 2015

MENTIRAS URBANAS 2 - AS MARGINAIS SANGRAM

                                 

[versão atualizada, em 10 de agosto]

         O que está por trás na redução da velocidade penal nas marginais? Uns dirão, certamente, que a sanha por arrecadação da Prefeitura de São Paulo, sob a batuta do prefeito Fernando Haddad, mais criticado por ser "cria eleitoral" de Lula do que por sua administração propriamente dita [ou será que o governador Geraldo Alckmin, tantos anos no governo, tem feito tão poucas besterias... mentiu quando deixou faltar água para milhões de pessoas em São Paulo, o Estado mais rico da nação enfrenta a maior epidemia de dengue da história, mais de 500 mil casos, sem falar na  "pedalada fiscal" à moda paulista: surrupiando o dinheiro da restituição da NFE [Nota Fiscal Eletrônica] para fechar contas. Mas não se trata de política partidária... não vou entrar nessa. Não é isso que a situação exige... não se trata se gosto ou não do prefeito, se já fez muito ou pouca besteira [afinal isso é, digamos, "subjetivo": e, por enquanto, ainda há dia e hora para votar!]
   
         Não entendi bem, ainda, o motivo de tanta ira de motoristas paulistanos contra a redução da velocidade nas grandes avenidas, principalmente nas marginais -- onde normalmente a velocidade já não passa dos 60 km/h nos picos. Onde, por exemplo, um motorista de caminhão levanta a caçamba e destrói uma ponte só para não ser pego pelo radar e assim não pagar multa, na faixa central. Mas nós vamos pagar o conserto da ponte do Piqueri [a conta é nossa]. 
        
         Curiosamente, desde que a velocidade foi reduzida nem houve congestionamentos nas marginais -- houve claro lentidão e engarrafamento  nos horários de pico da manhã e no anoitecer. As rádios e emissoras que se interessam  pelo assunto, vivem [e faturam] com a informação do tráfego ruim deram voz -- como cantou certa vez Caetano --  "aos boçais" [necas de gente que estuda o tema, necas de especialistas isentos]. Somos todos uns boçais?, indagava a música.

        Fluidez, fluidez, fluidez, fluidez na maioria das horas, foi o que vi na última semana quando, da casa da grande senhora em Santana de Parnaíba vim a São Paulo, para cumprir compromissos, fora dos picos. Exceto pelo gargalo do Cebolão, alcancei o Itaim Bibi com até 35 minutos de antecedência  [afinal com medo do pior, sempre venho de lá dou alguma folga.]. Inacreditável.  Ok, vão dizer,"estamos em férias". Ok,, vamos aguardar.

        Não sou engenheiro de tráfego, mas me parece meio óbvio que carros andando na mesma velocidade, baixa, em avenidas expressas. causam menos acidentes, e isso aumenta a velocidade média geral, Exceto claro se o um doido andar, ziguezagueando, em outro ritmo, obrigando os outros a frear, ou ainda pior, se caminhões, ônibus e motociclistas não respeitarem as leis de trânsito como é de costume e provocarem acidentes. Ok, Haddad, os radares controlam os carros. Mas, sem demagogia prefeito, dezenas de marronzinhos deveriam se dedicar a fiscalizar ônibus e caminhões "alucinógenos alucinados" colando em carros, desafiando ora as leis da física ora a decência no trânsito ora agindo como assassinos. "Policiais de radar em punho sobre as pontes deveriam também  vigiar só os motoqueiros suicidas, que continuam soltos aos borbotões [desses que morrem um por dia passando a 200 km entre um carro e outro, acenando e chutando espelhinhos]. Nada contra o serviço fundamental de entrega dos motoboys, Mas os imprudentes, velocistas e apocalípticos devem sentir o peso da caneta, do bolso e da apreensão da moto.

        Nas marginais; o que falta é muita fiscalização; boçais de todos os matizes e veículos travam o que chamo diariamente de a "Batalha de Hobbes"; a guerra de todos contra sobre rodas*. Por exemplo, um motoqueiro que fosse pego acima do limite de 60 km na marginal, entre o carro e outro, perderia a carta na hora por 15 dias. Reincidente, por 30 [desde quando é permitido por lei moto andar entre um carro e outro sob a faixa, a mais de 100 km/h?]. Por que os brasileiros que vivem em Miami, ou qualquer cidade americana, lá respeitam as leis? Que são muito mais rigorosas que as daqui. Nem ia falar da tolerância zero de Nova York [zero, sim, nenhuma morte no trânsito, e a meta lá agora]. Mas como o brasileiro adora "arrotar" exemplos da sociedade americana...

      O paulistano, doente por automóvel não suporta ver seu bem mais "valioso'' restringido [tem sujeito que até tem na garagem um carro que vale mais que a casa onde mora]. Nada contra os os objetos de desejo de alguém; apenas retratos que ilustram o espírito dessa terra que já elegeu Janio, Maluf, Pita, a velha turma dos túneis, elevados, das avenidas superfaturadas só para carros -- e que fizeram escola. Transporte coletivo, só "no céu", em obras que aparecem em campanhas eleitorais na TV, mas nunca começam ou acabam; tipo "aerotrem", "VLTs", monotrilhos. [Ackmin vai entregar, por exemplo, o Rodoanel Norte, mas não o monotrilho Congonhas-Vila Sônia, um esqueleto aéreo, fratura exposta cortando há anos a zona sul]. Claro que o Rodoanel é importante, mas você me entende...

     No início, os "homens e mulheres rodados" odiavam o cinto de segurança, depois o rodízio e agora ciclovias ou ciclofaixas. que "roubam" seu espaço [claro que houve erros e alguns exageros nessa última ideia]. Se pudessem, os "homens rodados" só usariam helicópteros. E as "penélopes charmosas", estas sim teriam faixas exclusivas. E a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)? Já foi melhor. Hoje, prefere fazer papel ridículo. Prefere falar em arrastão nas marginais, como se a Prefeitura facilitasse a vida dos marginais. Aliás, como se arrastão fosse novidade ali.
 
                                                               

      Estranhou as fotos? O assunto não é a "'redução da velocidade penal" das marginais?
 
       Mas a guerra está é aquí. Na guerra do Vietnã, 58 mil soldados dos EUA voltaram ensacados, de 1965 [quando iniciou-se o envio de tropas] a 1975 [a derrota americana]. No Brasil. morrem por ano no trânsito cerca de 45 mil pessoas. No ano passado, foram 48 mil mortos aqui [uma pessoa a cada 10 minutos, 6 pessoas por hora, 132 por mês]. Em número absolutos, o Brasil é o quarto país do mundo com o maior número de mortes no trânsito, atrás só da China, Índia e Nigéria. No Vietnã, morreram durante toda a guerra cerca de 4  milhões de civis vietnamitas (do norte ou do sul), em 20 anos (1955-1975), ou sejam 200 mil por ano. No país com a maior frota veicular do mundo, os Estados Unidos, morrem 11 pessoas para cada grupo de 100 mil habitantes. No Brasil, 22 pessoas. Só, na cidade de São Paulo, morreram no ano passado 1.200 pessoas vítimas da imprudência no trânsito, quase 10% dos casos nas marginais.
   
      [Se ficou lento demais na pista local, sempre há como rever, não é prefeito? Passados, 15 dias de nova velocidade, acho que já é tempo de rever: 50 km/h é muito pouco, é difícil até para mudar de faixa]  Já nas pistas expressas, tudo bem nos 70 km/h, o motorista que ligue o piloto automático, olhe pra frente, ouça música, bata-papo, e só não use o celular.
 
       O que custa tentar? Custa mais vidas e menos gastos colossais com hospitais, flores, enterros etc. Sendo contido nas estatísticas, nos últimos 50 anos o trânsito matou 2,3 milhões de pessoas no Brasil. Sem choro nem vela, é preciso dizer mais alguma coisa?

                                                                           ***

PS - O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) é conhecido pelo seu pensamento político, que até hoje permeia as relações sociais e está mais vivo do que nunca no mundo contemporâneo. Sua principal preocupação é o problema da ordem social e política: como os seres humanos podem conviver juntos em paz, sem "a guerra de todos contra todos"? Ele apresenta medidas austeras: na verdade, defende um Estado forte [autoritário até, mas isso é outra discussão]. Caso contrário, o que existe é um ''estado de natureza" parecido a guerra civil -- uma situação de insegurança onde todos têm motivo para temer uma morte violenta e a cooperação humana não existe. O livro clássico: "Leviatã".

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MENTIRAS URBANAS 1 - CÁPSULAS ANTICONTATO


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8 FRASES QUE POSTEI + 2 TOLICES COLEGIAIS

      E assim caminha a rede mundial de computadores


1) "A internet une quem está longe e afasta quem está perto"
2) "Selfie-se quem puder"
3) "Isso aqui parece vida, mas não é!"
4)  "Comunicação de mais diz menos"
5)  "Não sou indiferente, sou apenas diferente"
6)  "Clique só no que gosta, ninguém perde, não dá briga"
7)  "O protocolo é o salvo-conduto dos medíocres
       O protocolo é a morte da imaginação
       O protocolo se [a]funda no medo de arriscar
       O protocolo é Pilatos lavando as mãos"
  8) "Cunha mó breu"
      (homenagem à política em 2015; a cadeia te espera "cunhado" Eduardo)

FLASH 1

"Vagal": vi a palavra na lista de presença de um  professor de física [era um assunto tão rico e até interessante, mas tão aborrecido nas aulas dele]. Colocando adjetivos na lista, ele definia o tratamento a ser dado a alguns alunos "especiais". Um dia ao lado do número 16, George, eu fiquei chocado: "vagal". Até ali achava que não implicava comigo. Relevei, após o choque da descoberta. Depois, fiquei feliz, afinal só pode ser vagal aquele sujeito que tem potencial para não sê-lo. Então, o "vagal" passou de ano....

 Não durou muito; o professor foi demitido. Será que ele também era vagal?

FLASH 2

"Banana maçã. É banana ou é maçã!?", escrevi numa capa de caderno de colegial. Sem que eu visse [tinha ido até a cantina], um amigo da escola encerrou minha questão com frugalidade; "'É banana, estúpido!!!" Vi, li, ri; quem mandou ler "A Náusea", de JP Sartre, e levar a sério a ponto de ver existencialismo onde nunca existiu!


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terça-feira, 21 de julho de 2015

GOLPE EM HOSPITAIS + FALSA MULTA DE TRÂNSITO



        Alô, quem fala? Sim, você é parente dele? Sim. O senhor já sabe quando ele terá alta? Não, estamos aguardando uma nova visita do dr. Eduardo Kamões. Acho que em no máximo em dois dias. Ok, aqui é do departamento de controle e finanças do hospital, só para conferir, por favor me passe o nome completo do paciente. "Carlos Pato de Almeida". Dia de nascimento. 16-08-2015. Então, como eu ia dizendo, o senhor sabe se o plano de saúde está cobrindo todas as despesas. Ok, de qualquer forma, o senhor precisa fazer um depósito-caução no valor de R$ 3 mil. Não se preocupe, é um procedimento padrão, esse valor será devolvido quando o paciente receber alta. Então, faça o depósito na seguinte conta corrente 17117-1 agência 2424, banco Ontário, até o meio-dia.
        [Já são 11h]
        O depósito é feito.
        O caso da família "Pato de Almeida" entra nas estatísticas de mais um golpe telefônico, bem-sucedido, dado em hospitais de São Paulo. Aí, depois sai o alerta: "Comunicamos que em nosso hospital nenhum aviso de cobrança é feito via telefone e que qualquer pagamento deve ser feito exclusivamente no setor financeiro. Qualquer dúvida, entre em contato diretamente com o setor de internações".
                                                               
                                                                  *   *   *



     A caixa dos Correios está cheia de notícias ruins, como de costume. Só contas a pagar. Entre elas, uma multa de trânsito. Na verdade, uma falsa multa. Trata-se de uma montagem feita no computador, baseada no aviso oficial de infração, com a foto do carro numa rua onde o desavisado costuma passar. Logo depois, chega a falsa notificação de cobrança da multa, com valor discriminado [até com desconto de 20%, se for paga antecipadamente]: tudo também parece certinho, batendo, pontos na carteira etc. Tudo igual ao documento oficial, mas com o código de barras fraudado ou com o número de boleto que, digitado, manda o dinheiro da vítima para a conta bancária da quadrilha.
      Ou seja, sem notar diferença ou algo anormal, o desavisado paga uma multa que nunca existiu.

     Como começa o golpe? Os larápios tiram fotos de vários carros numa determinada rua de São Paulo, perto de um radar fixo. Através das placas, identificam os donos dos veículos e o seus endereços. Enviam as notificações com imagens. Ou nem isso, enviam as notificações de cobrança direto. Como evitar o golpe? Conferir a existência da multa nos sites ou nos próprios órgãos públicos e estranhar se a notificação de cobrança chegar antes do envio do aviso da infração [aquele em que o dono do veículo ainda pode indicar o nome do condutor que estava ao volante no ato da infração].
     
    Sem mais, e se liga...
         
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domingo, 12 de julho de 2015

TRABALHO, TERRA E TETO

Papa: "Defender a Mãe Terra e pôr a economia a serviço dos povos"

           Assim escreveu-me um amigo de colégio. "Já ouvi palavras semelhantes vindas da boca de outros líderes espirituais, mas vindas da boca de um papa é a primeira vez. O papa Francisco parece ser mesmo um ser iluminado. É de líderes espirituais assim que a humanidade anda precisando", disse. Abaixo, leia a íntegra do discurso do papa:

Bolívia, Santa Cruz – Expo Feira, 9 de julho de 2015

Boa tarde a todos!

         Há alguns meses, reunimo-nos em Roma e não esqueço aquele nosso primeiro encontro. Durante este tempo, trouxe-vos no meu coração e nas minhas orações. Alegra-me vê-vos de novo aqui, debatendo os melhores caminhos para superar as graves situações de injustiça que padecem os excluídos em todo o mundo. Obrigado, senhor presidente Evo Morales por sustentar tão decididamente este encontro.

        Então, em Roma, senti algo muito belo: fraternidade, paixão, entrega, sede de justiça. Hoje, em Santa Cruz de la Sierra, volto a sentir o mesmo. Obrigado! Soube também, pelo Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, presidido pelo cardeal Turkson, que são muitos na Igreja aqueles que se sentem mais próximos dos movimentos populares. Muito me alegro por isso! Ver a Igreja com as portas abertas a todos vós, que se envolve, acompanha e consegue sistematizar em cada diocese, em cada comissão “Justiça e Paz”, uma colaboração real, permanente e comprometida com os movimentos populares. Convido-vos a todos, bispos, sacerdotes e leigos, juntamente com as organizações sociais das periferias urbanas e rurais a aprofundar este encontro.

        Deus permitiu que nos voltássemos a ver hoje. A Bíblia lembra-nos que Deus escuta o clamor do seu povo e também eu quero voltar a unir a minha voz à vossa: terra, teto e trabalho para todos os nossos irmãos e irmãs. Disse-o e repito: são direitos sagrados. Vale a pena, vale a pena lutar por eles. Que o clamor dos excluídos seja escutado na América Latina e em toda a Terra.


        1. Comecemos por reconhecer que precisamos de uma mudança

        Quero esclarecer, para que não haja mal-entendidos, que falo dos problemas comuns de todos os latino-americanos e, em geral, de toda a humanidade. Problemas, que têm uma matriz global e que atualmente nenhum Estado pode resolver por si mesmo. Feito este esclarecimento, proponho que nos coloquemos estas perguntas:

        - Reconheçamos que as coisas não andam bem num mundo onde há tantos camponeses sem terra, tantas famílias sem teto, tantos trabalhadores sem direitos, tantas pessoas feridas na sua dignidade?
        - Reconheçamos que as coisas não andam bem, quando explodem tantas guerras sem sentido e a violência fratricida se apodera até dos nossos bairros?
        - Reconheçamos que as coisas não andam bem, quando o solo, a água, o ar e todos os seres da criação estão sob ameaça constante?

         2. Então digamos sem medo: precisamos e queremos uma mudança

         Nas vossas cartas e nos nossos encontros, relataram-me as múltiplas exclusões e injustiças que sofrem em cada atividade laboral, em cada bairro, em cada território. São tantas e tão variadas como muitas e diferentes são as formas próprias de enfrentar-las. Mas há um elo invisível que une cada uma destas exclusões: conseguimos nós reconhecê-lo? É que não se trata de questões isoladas. Pergunto-me se somos capazes de reconhecer que estas realidades destrutivas correspondem a um sistema que tornou-se global. Reconheçamos que este sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza?

         Se assim é – insisto – digamos sem medo: queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos... E nem sequer o suporta a Terra, a irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco.
        Queremos uma mudança nas nossas vidas, nos nossos bairros, no vilarejo, na nossa realidade mais próxima; mas uma mudança que toque também o mundo inteiro, porque hoje a interdependência global requer respostas globais para os problemas locais. A globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve substituir esta globalização da exclusão e da indiferença.

        Hoje quero refletir convosco sobre a mudança que queremos e precisamos. Como sabem, recentemente escrevi sobre os problemas da mudança climática. Mas, desta vez, quero falar duma mudança noutro sentido. Uma mudança positiva, uma mudança que nos faça bem, uma mudança – poderíamos dizer – redentora. Porque é dela que precisamos. Sei que buscais uma mudança e não apenas vós: nos diferentes encontros, nas várias viagens, verifiquei que há uma expectativa, uma busca forte, um anseio de mudança em todos os povos do mundo. Mesmo dentro da minoria cada vez mais reduzida que pensa sair beneficiada deste sistema, reina a insatisfação e, sobretudo, a tristeza. Muitos esperam uma mudança que os liberte desta tristeza individualista que escraviza.

          O tempo, irmãos e irmãs, o tempo parece exaurir-se; já não nos contentamos com lutar entre nós, mas chegamos até a assanhar-nos contra a nossa casa. Hoje, a comunidade científica aceita aquilo que os pobres já há muito denunciam: estão a produzir-se danos talvez irreversíveis no ecossistema. Está-se a castigar a terra, os povos e as pessoas de forma quase selvagem. E por trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesarea chamava “o esterco do diabo”: reina a ambição desenfreada de dinheiro. O serviço ao bem comum fica em segundo plano. Quando o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo contra povo e até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum.

         Não quero alongar-me na descrição dos efeitos malignos desta ditadura sutil: vós conhecei-los! Mas também não basta assinalar as causas estruturais do drama social e ambiental contemporâneo. Sofremos de certo excesso de diagnóstico, que às vezes nos leva a um pessimismo charlatão ou a rejubilar com o negativo. Ao ver a crônica negra de cada dia, pensamos que não haja nada que se possa fazer para além de cuidar de nós mesmos e do pequeno círculo da família e dos amigos.

        Que posso fazer eu, recolhedor de papelão, catador de lixo, limpador, reciclador, frente a tantos problemas, se mal ganho para comer? Que posso fazer eu, artesão, vendedor ambulante, carregador, trabalhador irregular, se não tenho sequer direitos laborais? Que posso fazer eu, camponesa, indígena, pescador que dificilmente consigo resistir à propagação das grandes corporações? Que posso fazer eu, a partir da minha comunidade, do meu barraco, da minha povoação, da minha favela, quando sou diariamente discriminado e marginalizado? Que pode fazer aquele estudante,  aquele jovem, aquele militante, aquele missionário que atravessa as favelas e os paradeiros com o coração cheio de sonhos, mas quase sem nenhuma solução para os meus problemas? Muito!  Podem fazer muito. Vós, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos “3 T” (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem!

          3. Vós sois semeadores de mudança


        Aqui, na Bolívia, ouvi uma frase de que gosto muito: “processo de mudança”. A mudança concebida, não como algo que um dia chegará porque se impôs esta ou aquela opção política ou porque se estabeleceu esta ou aquela estrutura social. Sabemos, amargamente, que uma mudança de estruturas, que não seja acompanhada por uma conversão sincera das atitudes e do coração, acaba a longo ou curto prazo por burocratizar-se, corromper-se e sucumbir. Por isso gosto tanto da imagem do processo, onde a paixão por semear, por regar serenamente o que outros verão florescer, substitui a ansiedade de ocupar todos os espaços de poder disponíveis e de ver resultados imediatos. Cada um de nós é apenas uma parte de um todo complexo e diversificado interagindo no tempo: povos que lutam por uma afirmação, por um destino, por viver com dignidade, por “viver bem”.

       Vós, a partir dos movimentos populares, assumis as tarefas comuns motivados pelo amor fraterno, que se rebela contra a injustiça social. Quando olhamos o rosto dos que sofrem, o rosto do camponês ameaçado, do trabalhador excluído, do indígena oprimido, da família sem teto, do imigrante perseguido, do jovem desempregado, da criança explorada, da mãe que perdeu o seu filho num tiroteio porque o bairro foi tomado pelo narcotráfico, do pai que perdeu a sua filha porque foi sujeita à escravidão; quando recordamos estes “rostos e nomes” estremecem-nos as entranhas diante de tanto sofrimento e comovemo-nos…. Porque “vimos e ouvimos”, não a fria estatística, mas as feridas da humanidade dolorida, as nossas feridas, a nossa carne. Isto é muito diferente da teorização abstrata ou da indignação elegante. Isto comove-nos, move-nos e procuramos o outro para nos movermos juntos. Esta emoção feita ação comunitária é incompreensível apenas com a razão: tem um plus de sentido que só os povos entendem e que confere a sua mística particular aos verdadeiros movimentos populares.

        Vós viveis, cada dia, imersos na crueza da tormenta humana. Falastes-me das vossas causas, partilhastes comigo as vossas lutas. E agradeço-vos. Queridos irmãos, muitas vezes trabalhais no insignificante, no que aparece ao vosso alcance, na realidade injusta que vos foi imposta e a que não vos resignais opondo uma resistência ativa ao sistema idólatra que exclui, degrada e mata. Vi-vos trabalhar incansavelmente pela terra e a agricultura camponesa, pelos vossos territórios e comunidades, pela dignificação da economia popular, pela integração urbana das vossas favelas e agrupamentos, pela auto-construção de moradias e o desenvolvimento das infra-estruturas do bairro e em muitas atividades comunitárias que tendem à reafirmação de algo tão elementar e inegavelmente necessário como o direito aos “3 T”: terra, teto e trabalho.

        Este apego ao bairro, à terra, ao território, à profissão, à corporação, este reconhecer-se no rosto do outro, esta proximidade no dia-a-dia, com as suas misérias e os seus heroísmos cotidianos, é o que permite realizar o mandamento do amor, não a partir de ideias ou conceitos, mas a partir do genuíno encontro entre pessoas, porque não se amam os conceitos nem as ideias; amam-se as pessoas. A entrega, a verdadeira entrega nasce do amor pelos homens e mulheres, crianças e idosos, vilarejos e comunidades... Rostos e nomes que enchem o coração. A partir destas sementes de esperança semeadas pacientemente nas periferias esquecidas do planeta, destes rebentos de ternura que lutam por subsistir na escuridão da exclusão, crescerão grandes árvores, surgirão bosques densos de esperança para oxigenar este mundo.

           Vejo, com alegria, que trabalhais no que aparece ao vosso alcance, cuidando dos rebentos; mas, ao mesmo tempo, com uma perspectiva mais ampla, protegendo o arvoredo. Trabalhais numa perspectiva que não só aborda a realidade setorial que cada um de vós representa e na qual felizmente está enraizada, mas procurais também resolver, na sua raiz, os problemas gerais de pobreza, desigualdade e exclusão.
     
           Felicito-vos por isso. É imprescindível que, a par da reivindicação dos seus legítimos direitos, os povos e as suas organizações sociais construam uma alternativa humana à globalização exclusiva. Vós sois semeadores de mudança. Que Deus vos dê coragem, alegria, perseverança e paixão para continuar a semear. Podeis ter a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, vamos ver os frutos. Peço aos dirigentes: sede criativos e nunca percais o apego às coisas próximas, porque o pai da mentira sabe usurpar palavras nobres, promover modas intelectuais e adotar posições ideológicas, mas se construirdes sobre bases sólidas, sobre as necessidades reais e a experiência viva dos vossos irmãos, dos camponeses e indígenas, dos trabalhadores excluídos e famílias marginalizadas, com certeza não vos equivocareis.
     
          A Igreja não pode nem deve ser alheia a este processo no anúncio do Evangelho. Muitos sacerdotes e agentes pastorais realizam uma tarefa imensa acompanhando e promovendo os excluídos em todo o mundo, ao lado de cooperativas, dando impulso a empreendimentos, construindo casas, trabalhando abnegadamente nas áreas da saúde, desporto e educação. Estou convencido de que a cooperação amistosa com os movimentos populares pode robustecer estes esforços e fortalecer os processos de mudança.
     
           No coração, tenhamos sempre a Virgem Maria, uma jovem humilde duma pequena aldeia perdida na periferia dum grande império, uma mãe sem teto que soube transformar um curral de animais na casa de Jesus com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura. Maria é sinal de esperança para os povos que sofrem dores de parto até que brote a justiça. Rezo à Virgem do Carmo, padroeira da Bolívia, para fazer com que este nosso Encontro seja fermento de mudança.

        4. Algumas tarefas importantes

            Por último, gostaria que refletíssemos, juntos, sobre algumas tarefas importantes neste momento histórico, pois queremos uma mudança positiva em benefício de todos os nossos irmãos e irmãs. Disto estamos certos! Queremos uma mudança que se enriqueça com o trabalho conjunto de governos, movimentos populares e outras forças sociais. Sabemos isto também! Mas não é tão fácil definir o conteúdo da mudança, ou seja, o programa social que reflita este projeto de fraternidade e justiça que esperamos. Neste sentido, não esperem uma receita deste Papa. Nem o Papa nem a Igreja têm o monopólio da interpretação da realidade social e da proposta de soluções para os problemas contemporâneos. Atrever-me-ia a dizer que não existe uma receita. A história é construída pelas gerações que se vão sucedendo no horizonte de povos que avançam individuando o próprio caminho e respeitando os valores que Deus colocou no coração.

           Gostaria, no entanto, de vos propor três grandes tarefas que requerem a decisiva contribuição do conjunto dos movimentos populares:

         4.1 A primeira tarefa é pôr a economia a serviço dos povo

          Os seres humanos e a natureza não devem estar ao serviço do dinheiro. Digamos NÃO a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra.

          A economia não deveria ser um mecanismo de acumulação, mas a condigna administração da casa comum. Isto implica cuidar zelosamente da casa e distribuir adequadamente os bens entre todos. A sua finalidade não é unicamente garantir o alimento ou um «decoroso sustento». Não é sequer, embora fosse já um grande passo, garantir o acesso aos “3 T” pelos quais combateis. Uma economia verdadeiramente comunitária – poder-se-ia dizer, uma economia de inspiração cristã – deve garantir aos povos dignidade, “prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos”¹. Isto envolve os “3 T” mas também acesso à educação, à saúde, à inovação, às manifestações artísticas e culturais, à comunicação, ao desporto e à recreação. Uma economia justa deve criar as condições para que cada pessoa possa gozar duma infância sem privações, desenvolver os seus talentos durante a juventude, trabalhar com plenos direitos durante os anos de atividade e ter acesso a uma digna aposentadoria na velhice. É uma economia onde o ser humano, em harmonia com a natureza, estrutura todo o sistema de produção e distribuição de tal modo que as capacidades e necessidades de cada um encontrem um apoio adequado no ser social. Vós – e outros povos também – resumis este anseio duma maneira simples e bela: “viver bem”.

        Esta economia é não apenas desejável e necessária, mas também possível. Não é uma utopia, nem uma fantasia. É uma perspectiva extremamente realista. Podemos consegui-la. Os recursos disponíveis no mundo, fruto do trabalho intergeneracional dos povos e dos dons da criação, são mais que suficientes para o desenvolvimento integral de “todos os homens e do homem todo”². Mas o problema é outro. Existe um sistema com outros objetivos. Um sistema que, apesar de acelerar irresponsavelmente os ritmos da produção, apesar de implementar métodos na indústria e na agricultura que sacrificam a Mãe Terra na ara da “produtividade”, continua a negar a milhares de milhões de irmãos os mais elementares direitos econômicos, sociais e culturais. Este sistema atenta contra o projeto de Jesus.

       A justa distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera filantropia. É um dever moral. Para os cristãos, o encargo é ainda mais forte: é um mandamento. Trata-se de devolver aos pobres e às pessoas o que lhes pertence. O destino universal dos bens não é um adorno retórico da doutrina social da Igreja. É uma realidade anterior à propriedade privada. A propriedade, sobretudo quando afeta os recursos naturais, deve estar sempre em função das necessidades das pessoas. E estas necessidades não se limitam ao consumo. Não basta deixar cair algumas gotas, quando os pobres agitam este copo que, por si só, nunca derrama. Os planos de assistência que acodem a certas emergências deveriam ser pensados apenas como respostas transitórias. Nunca poderão substituir a verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre, criativo, participativo e solidário.

          Neste caminho, os movimentos populares têm um papel essencial, não apenas exigindo e  reclamando, mas fundamentalmente criando. Vós sois poetas sociais: criadores de trabalho, construtores de casas, produtores de alimentos, sobretudo para os descartados pelo mercado global.

          Conheci de perto várias experiências, onde os trabalhadores, unidos em cooperativas e outras formas de organização comunitária, conseguiram criar trabalho onde só havia sobras da economia idólatra. As empresas recuperadas, as feiras francas e as cooperativas de catadores de papelão são exemplos desta economia popular que surge da exclusão e que pouco a pouco, com esforço e paciência, adota formas solidárias que a dignificam. Quão diferente é isto do fato de os descartados pelo mercado formal serem explorados como escravos!

         Os governos que assumem como própria a tarefa de colocar a economia ao serviço das pessoas devem promover o fortalecimento, melhoria, coordenação e expansão destas formas de economia popular e produção comunitária. Isto implica melhorar os processos de trabalho, prover de adequadas infra-estruturas e garantir plenos direitos aos trabalhadores deste setor alternativo. Quando Estado e organizações sociais assumem, juntos, a missão dos “3 T”, ativam-se os princípios de solidariedade e subsidiariedade que permitem construir o bem comum numa democracia plena e participativa.

        4.2 A segunda tarefa é unir os nossos povos no caminho da paz e da justiça

         Os povos do mundo querem ser artífices do seu próprio destino. Querem caminhar em paz para a justiça. Não querem tutelas nem interferências, onde o mais forte subordina o mais fraco. Querem que a sua cultura, o seu idioma, os seus processos sociais e tradições religiosas sejam respeitados. Nenhum poder efetivamente constituído tem direito de privar os países pobres do pleno exercício da sua soberania e, quando o fazem, vemos novas formas de colonialismo que afetam seriamente as possibilidades de paz e justiça, porque “a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos, sobretudo o direito à independência”³.

       Os povos da América Latina alcançaram, com um parto doloroso, a sua independência política e, desde então, viveram já quase dois séculos duma história dramática e cheia de contradições procurando conquistar uma independência plena.

       Nos últimos anos, depois de tantos mal-entendidos, muitos países latino-americanos viram crescer a fraternidade entre os seus povos. Os governos da região juntaram seus esforços para fazer respeitar a sua soberania, a de cada país e a da região como um todo que, de forma muito bela como faziam os nossos antepassados, chamam a “Pátria Grande”
(4). Peço-vos, irmãos e irmãs dos movimentos populares, que cuidem e façam crescer esta unidade. É necessário manter a unidade contra toda a tentativa de divisão, para que a região cresça em paz e justiça.

         Apesar destes avanços, ainda subsistem fatores que atentam contra este desenvolvimento humano equitativo e cortam a soberania dos países da “Pátria Grande” e de outras latitudes do planeta. O novo colonialismo assume variadas fisionomias. Às vezes, é o poder anônimo do ídolo dinheiro: corporações, credores, alguns tratados denominados “de livre comércio” e a imposição de medidas de “austeridade” que sempre apertam o cinto dos trabalhadores e dos pobres. Os bispos latino-americanos denunciam-no muito claramente, no documento de Aparecida, quando afirmam que “as instituições financeiras e as empresas transnacionais se fortalecem ao ponto de subordinar as economias locais, sobretudo debilitando os Estados, que aparecem cada vez mais impotentes para levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações”.
(5) Noutras ocasiões, sob o nobre disfarce da luta contra a corrupção, o narcotráfico ou o terrorismo – graves males dos nossos tempos que requerem uma ação internacional coordenada – vemos que se impõem aos Estados medidas que pouco  têm a ver com a resolução de tais problemáticas e muitas vezes tornam as coisas piores.

        Da mesma forma, a concentração monopolista dos meios de comunicação social que pretende impor padrões alienantes de consumo e certa uniformidade cultural é outra das formas que adota o novo colonialismo. É o colonialismo ideológico. Como dizem os bispos da África, muitas vezes pretende-se converter os países pobres em “peças de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigante.

       4.3  Graves problemas da humanidade

       Temos de reconhecer que nenhum dos graves problemas da humanidade pode ser resolvido sem a interação dos Estados e dos povos a nível internacional. Qualquer ato de envergadura realizado numa parte do Planeta repercute-se no todo em termos econômicos, ecológicos, sociais e culturais. Até o crime e a violência se globalizaram. Por isso, nenhum governo pode atuar à margem duma responsabilidade comum. Se queremos realmente uma mudança positiva, temos de assumir humildemente a nossa interdependência. Mas interação não é sinônimo de imposição, não é subordinação de uns em função dos interesses dos outros. O colonialismo, novo e velho, que reduz os países pobres a meros fornecedores de matérias-primas e mão de obra barata, gera violência, miséria, emigrações forçadas e todos os males que vêm juntos precisamente porque ao pôr a periferia em função do centro, nega-lhes o direito a um desenvolvimento integral. Isto é desigualdade, e a desigualdade gera violência que nenhum recurso policial militar ou dos serviços secretos será capaz de deter.

        Digamos não às velhas e novas formas de colonialismo. Digamos sim ao encontro entre povos e culturas. Bem-aventurados sejam os que trabalham pela paz.
        Aqui quero deter-me num tema importante. É que alguém poderá, com direito, dizer: «Quando o papa fala de colonialismo, esquece-se de certas ações da Igreja». Com pesar, vo-lo digo: Cometeram-se muitos e graves pecados contra os povos nativos da América, em nome de Deus. Reconheceram-no os meus antecessores, afirmou-o o Celam e quero reafirmá-lo eu também. Como São João Paulo II, peço que a Igreja “se ajoelhe diante de Deus e implore o perdão para os pecados passados e presentes dos seus filhos” (6). E eu quero dizer-vos, quero ser muito claro, como foi São João Paulo II: Peço humildemente perdão, não só para as ofensas da própria Igreja, mas também para os crimes contra os povos nativos durante a chamada conquista da América.

         Peço-vos também a todos, crentes e não crentes, que se recordem de tantos bispos, sacerdotes e leigos que pregaram e pregam a boa nova de Jesus com coragem e mansidão, respeito e em paz; que, na sua passagem por esta vida, deixaram impressionantes obras de promoção humana e de amor, pondo-se muitas vezes ao lado dos povos indígenas ou acompanhando os próprios movimentos populares mesmo até ao martírio. A Igreja, os seus filhos e filhas, fazem parte da identidade dos povos na América Latina. Identidade que alguns poderes, tanto aqui como noutros países, se empenham por apagar, talvez porque a nossa fé é revolucionária, porque a nossa fé desafia a tirania do ídolo dinheiro. Hoje vemos, com horror, como no Oriente Médio e em outros lugares do mundo se persegue, tortura, assassina a muitos irmãos nossos pela sua fé em Jesus. Isto também devemos denunciá-lo: dentro desta terceira guerra mundial em parcelas que vivemos, há uma espécie de genocídio em curso que deve cessar.

          Aos irmãos e irmãs do movimento indígena latino-americano, deixem-me expressar a minha mais  profunda estima e felicitá-los por procurarem a conjugação dos seus povos e culturas segundo uma forma de convivência, a que eu chamo poliédrica, onde as partes conservam a sua identidade construindo, juntas, uma pluralidade que não atenta contra a unidade, mas fortalece-a. A sua procura desta interculturalidade que conjuga a reafirmação dos direitos dos povos nativos com o respeito à integridade territorial dos Estados enriquece-nos e fortalece-nos a todos.

         4.4 Terceira tarefa, a mais importante que devemos ter, defender a Mãe Terra
     
         A casa comum de todos nós está a ser saqueada, devastada, vexada impunemente. A covardia em defendê-la é um pecado grave. Vemos, com crescente decepção, sucederem-se uma após outras cúpulas internacionais sem qualquer resultado importante. Existe um claro, definitivo e inadiável imperativo ético de atuar que não está a ser cumprido. Não se pode permitir que certos interesses – que são globais, mas não universais – se imponham, submetendo Estados e organismos internacionais, e continuem a destruir a criação. Os povos e os seus movimentos são chamados a clamar, mobilizar-se, exigir – pacífica, mas tenazmente – a adoção urgente de medidas apropriadas. Peço-vos, em nome de Deus, que defendais a Mãe Terra. Sobre este assunto, expressei-me devidamente na carta encíclica “Laudato si”.

         5. O futuro da humanidade


         Para concluir, quero dizer-lhes novamente: O futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem e também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo de mudança. Estou convosco. Digamos juntos do fundo do coração: nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância, nenhum jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma veneranda velhice. Continuai com a vossa luta e, por favor, cuidai bem da Mãe Terra. Rezo por vós, rezo convosco e quero pedir a nosso Pai Deus que vos acompanhe e abençoe, que vos cumule do seu amor e defenda no caminho concedendo-vos, em abundância, aquela força que nos mantém de pé: esta força é a esperança, a esperança que não decepciona. Obrigado! E peço-vos, por favor, que rezeis por mim."

[1] JOÃO XXIII, Carta enc. Mater et Magistra (15 de Maio de 1961), 3: AAS 53 (1961), 402.
[2] PAULO VI, Carta enc. Popolorum progressio, 14.
[3] PONTIFÍCIO CONSELHO «JUSTIÇA E PAZ», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 157.
[4] V CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE (2007), Documento de Aparecida, 66.
[5] JOÃO PAULO II, Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Africa (14 de Setembro de 1995), 52: AAS 88 (1996), 32-33. Cf. IDEM, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 22: AAS 80 (1988), 539.
[6] JOÃO PAULO II, Bula Incarnationis mysterium, 11.

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quinta-feira, 9 de julho de 2015

DILMA, SEM DESTINO 2 [PEDALADAS]



Dilma pedala diante da Lava Jato Planalto: coincidência
       
           Despencando nas pesquisas, a presidente Dilma Rousseff pôde sentir bem a diferença no clima político e econômico do país: foi no mês passado, durante os recentes rolés que deu sobre duas rodas [no caso, bicicleta] para além dos jardins do Palácio da Alvorada, em Brasília. Ela deve sentir saudade daquele 8 de agosto de 2013, quando o cenário era outro: Dilma estava com popularidade alta no momento em que, ao melhor estilo "easy rider" [ou "sem destino"], colocou o capacete e passeou, às escondidas, pelas avenidas da capital federal na garupa da mítica motocicleta norte-americana Harley Davidson, pilotada pelo ex-ministro da Previdência Carlos Gabas. A inflação de julho daquele ano fechara em 0,03% [em 12 meses era de apenas 6,5%, abaixo da meta de 6,7%] e, no câmbio comercial, o dólar valia R$ 2,31. Dilma surfava nas pesquisas. E naquela voltinha "rebelde" de moto, que surpreendeu a segurança palaciana, ela parecia buscar um instante de descontração, escapar, por alguns minutos que fosse, da formalidade do cargo [clique abaixo no link Dilma, Sem Destino].

          Três meses depois, em novembro de 2013, um ano antes da reeleição, a presidente tinha 47% das intenções de voto, contra 19% de Aécio Neves e 11% de Eduardo Campos. Ainda não havia o noticiário diário sobre a vigarice de mão grande instalada na direção da Petrobras, que envolveu outras legendas [inclusive da oposição, embora a operação Lava Jato tenha esguicho de limpeza com foco único]. As acusações de corrupção colossal ainda não haviam manchado a bandeira do PT, que no poder mostrou-se em muitas coisas igual aos partidos que sempre criticou, com práticas que envergonharam seus militantes e frustraram milhões de eleitores.
    
          Agora, quando a presidente Dilma resolveu andar de bicicleta nos arredores do Alvorada, no início de junho último, e sair do "estado de sítio" em que se encontrava, a sua popularidade já havia caído drasticamente -- e a inflação [em alta] hoje empata com a porcentagem de brasileiros que consideram seu segundo mandato ótimo e bom: apenas 9%. O dólar estourou faz tempo a barreira dos R$ 3, é negociado hoje a R$ 3,23. O ex-ministro Guido Mantega errou feio. "Quem apostar no dólar a R$ 3, vai quebrar a cara", disse antes de sair do governo no fim de 2014. Houve outros erros, crassos.
       
         Com capacete, óculos escuros, luvas, calça legging e jaqueta esportiva, Dilma chegou a pedalar fora do Palácio da Alvorada por cerca de meia hora sem ser reconhecida, acompanhada por seguranças. Enfim, ela saiu do casulo [onde se escondia das vaias] 15 kg mais magra, após aderir a uma dieta rigorosa que segue desde que se reelegeu no fim de 2014. Como a moto, a bicicleta é  norte-americana. Trata-se de um modelo da marca Specialized desenhado para o corpo feminino,  muito confortável, que ajuda Dilma a manter a boa forma. Com aro 26 e 21 marchas, ela é indicada tanto para pequenas voltas pela cidade quanto para trilhas na natureza, segundo o fabricante. Custa R$ 2.900. Já uma Calói, modelo Aluminum Sport, com mesmo aro e marchas, sai por R$ 600.

          Mas não foram essas pedaladas da presidente que ficaram famosas. As "pedaladas fiscais" é que ganharam notoriedade. E que ameaçam derrubar a presidente.“Não vou, não vou, não caio, não caio”, disse Dilma. “Não há provas de que eu fiz algo errado nas contas. Não fiz nada que não tenha sido feito antes. Também não pus a mão em dinheiro sujo".
     
        "Pedaladas" é o nome dado a manobras contábeis que o governo teria usado para cumprir as suas metas fiscais. O Tesouro Nacional teria atrasado repasses para bancos públicos e privados que financiam despesas do governo, entre elas verbas do Bolsa Família, do abono e seguro-desemprego e subsídios agrícolas. Os beneficiários só receberam em dia porque os bancos assumiram, com recursos próprios, os pagamentos dos programas sociais. Com isso, a dívida do governo com os bancos cresceu. Segundo processo aberto no Tribunal de Contas da União (TCU), cerca de R$ 40 bilhões estiveram envolvidos nessas manobras entre 2012 e 2014, em tese ferindo a Lei de Responsabilidade Fiscal. O governo alega que essa é uma “prática antiga”, registrada também no governo FHC, e que as “pedaladas fiscais” não representam operações de crédito propriamente ditas -- ou seja, o governo não emprestou dinheiro dos bancos para fechar suas contas. Teria sido como quem atrasa um aluguel.

       O TCU não pode reprovar as contas do governo, mas pode enviar parecer ao Congresso. que faria o julgamento político da ação do governo. O parecer deve passar pela Comissão Mista de Orçamento e, depois, ser votado nos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado. Se as contas forem rejeitadas, coisa que nunca aconteceu antes, a presidente Dilma pode aí sofrer processo de impedimento -- o grande desejo da oposição que, derrotada nas urnas, busca um argumento legal para encurtar o mandato da petista, sem que isso pareça um golpe.

       Para não cair da bicicleta, todo mundo sabe, pedalar é preciso. No caso da presidente Dilma: para não cair, governar é preciso, pedalar não é preciso. Ter um rumo é [mais que] necessário, não ser uma "easy rider" é imperativo.


DILMA, SEM DESTINO
[crônica publicada em 28 de agosto de 2013]



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segunda-feira, 6 de julho de 2015

GYÓRGY: A CINCO DIAS DE...

Gyórgy Petri [1943-2000]: o xará
                                                                          [versão atualizada]

               A cinco dias de uma cirurgia não é estranho que o medo da morte ronde os pensamentos de qualquer pessoa. É verdade, viver é muito perigoso, dizia João Guimarães Rosa (1908-1967), os riscos estão em toda parte, mas fazer uma operação [simples? complexa? tanto faz?] para tentar supostamente melhorar a qualidade de vida, aumenta a sensação de fragilidade e dá [é ruim, né?] uma espécie de choque de realidade à possibilidade de ser desligado, "puft" de repente, e ver tudo escurecer na velocidade de um toque no interruptor.

               Subitamente, poemas de Manoel Bandeira que falam da morte ganham corpo e povoam a mente. Assim como as incríveis imagens do genial e iconoclasta cineasta espanhol Luis Buñuel [1900-1983], que imagina o encontro com parentes e amigos no céu -- embora ele fosse ateu -- em um livro que prenuncia sua morte ["Meu Último Suspiro"], um ano antes dela ocorrer, Ele confessa também um desejo insólito; gostaria de uma vez a cada 10 anos ir a bancas dos jornais, saber dos desastres do mundo e depois, exausto e satisfeito, voltar sereno à proteção tranquilizadora da sepultura. Ou ainda ler e reler os versos à flor da pele do poeta húngaro Gyórgy Petri [1943-2000], que escreveu seus poemas mais poderosos durante os últimos meses do câncer que o matou mais cedo, aos 57 anos -- e que me foram apresentados por um colega de profissão, Nelson Ascher, que fez as traduções para o suplemento literário de um jornal. Reproduzo três poesias do meu xará, Gyórgy: "Que Pena", "Esqueça" e "Despedida". Embora a morte próxima esteja no foco dos poemas, o xará provoca arrepios ao tirar proveito dela para fazer, a rigor, o elogio à vida. Implacável. Cada linha é um soco no estômago e, ao mesmo tempo, um sopro nos pulmões, tamanho o impacto nos sentidos.
           
              O risco de morrer também aos 57 anos, numa cirurgia que dura cerca de seis horas [das quais pelo menos quatro acordado] talvez seja 100 vezes menor do que o de ter o celular roubado na Avenida Paulista. Cinco dias depois da cirurgia, a expectativa é de que tudo dê certo. O futuro [in]certo sempre predomina, mesmo quando achamos um jeito de viver a ilusão de que sempre estamos no leme. [não, não estamos no leme todo o tempo...] Viver é bom até o último minuto, com a intensidade energética vista nos primeiros 10 anos de vida dos nossos filhos, ainda assim tudo fica mesmo irrelevante diante dela...




QUE PENA                                                         

Que pena morrer justo quando
as coisas vinham melhorando,
mas não faz mal, reunindo em breve
chuva estival, restos de neve,
ramas com cheiro de aguardente
no outono, irei, sem que o lamente
mesclar-me às folhas, água, argila :
a encosta aguarda-me tranquila ;
quanto ainda falta e estarei junto
de Lilla e Maya é o que pergunto.
(Eu desceria à cova prontamente,
mas quem vai tomar conta
de Mari ou dar-lhe flor, assim
que os vermes nutram-se de mim?)

ESQUEÇA

Não diga que é o fim.
(Fim, afinal, do quê,
se é que tem fim de fato?)
Não diga coisa alguma
-- Algo melhor que não
Dizer coisa com coisa.
Esqueça que viveu
E tudo o que já quis.
Não é mais relevante.
Desacostume-se de ser :
Não viver é melhor.


DESPEDIDA

» Mesmo não tendo sido ouvida
É para sempre a despedida »

(N. Mihalkov, paráfrase)

Amigos, a canção chega a seu ponto
final. Adeus. Meu túmulo está pronto.
Poderia ter tido mais talento
ou trabalhado mais. Não deu. Lamento.
Se bem que acontecer desta maneira
seja um azar, admito, embora queira
viver mais, que bastou: não vale a pena
queixar-me de uma vida bela e plena.
Como esmeralda e jaspe no veludo,
meses preciosos ainda são, contudo,
gemas que ofuscam meu olhar contente;
cada aurora e manhã ainda é um presente.
Desfruto o que me resta e, glutão frente
a um gordo steak, roerei enquanto posso
meus derradeiros dias rente ao osso.

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domingo, 5 de julho de 2015

BERÇO DE SEGURANÇA MÁXIMA A BEBÊ HOMICIDA

                



        O jovem que comete crimes com menos de 18 anos deve ser punido como os adultos?
        Com o aumento da violência, principalmente nos grandes centros urbanos brasileiros nos últimos 30 anos, essa pergunta sempre provocou debates acalorados entre legisladores, juristas e a população – que, segundo pesquisas de opinião, aprova a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Após mais de duas décadas de divergências e ásperas discussões entre parlamentares, o tema foi votado duas vezes na Câmara dos Deputados, ganhou destaque na mídia e recolocou frente a frente quem, em defesa da segurança pública, exigia mais rigor nas penas impostas aos menores infratores, cada vez mais envolvidos em assassinatos e outras ações violentas, e aqueles que consideram a redução da maioridade penal uma medida inócua -- por tirar o foco da tentativa de recuperação dos meninos e simplesmente despejar centenas de jovens pobres em prisões superlotadas, consideradas “escolas do crime”. O tiro sairia, então, pela culatra: ali, esses adolescentes de 16 ou 17 anos seriam “presas” fáceis para o crime organizado e engrossariam as fileiras das facções que dominam os presídios do país,  de onde comandam assaltos e o tráfico de drogas.

       Um acordo interpartidário e depois uma questionada manobra regimental permitiram, nos dois primeiros dias de julho, que a maioridade penal caísse para 16 anos no Brasil, mas apenas para os crimes contra a vida. A Câmara aprovou -- por 323 votos a favor, 155 contra e 2 abstenções -- um projeto de lei que determina punições mais rigorosas para maiores de 16 anos que cometam os chamados crimes hediondos, que são: latrocínio [roubo seguido de morte], extorsão que resulte em morte, sequestro, estupro [incluindo o de vulnerável], homicídio qualificado [feito por grupos de extermínio e assassinato por motivo torpe ou fútil], genocídio, causar epidemia que leve à morte, fraude e adulteração de remédios e favorecimento à exploração sexual de menores. A lei inclui também o homicídio doloso [com intenção de matar] e a lesão corporal seguida de morte. A aprovação histórica da medida contrastava com a proposta semelhante que havia sido rejeitada 24h antes pela mesma Câmara, quando obteve votação insuficiente [303 votos]. Para ser aprovada, uma Proposta de Emenda Constitucional [PEC] precisa de no mínimo 308 votos [60% dos 513 deputados]. O texto foi alterado em relação ao votado na madrugada anterior. Foram retirados do projeto os crimes de tráfico de drogas, roubo qualificado [com uso de arma de fogo] e lesão corporal grave.
      
        Houve também mudanças no texto original, que inicialmente previa a redução da maioridade penal para qualquer tipo de crime, grave ou não. Esse era, aliás, o anseio da chamada “bancada da bala” e do presidente da Casa, Eduardo Cunha [PMDB-RJ], autor de uma das 66 propostas sobre punição a menores infratores e redução da maioridade penal que estão no Congresso. Antes de ser  promulgado, o projeto deve passar por um segundo turno na Câmara e duas votações no Senado. Para a “bancada da bala”, a aprovação da redução da maioridade só para os crimes contra a vida é uma vitória, um “avanço para a segurança”. O acordo entre os partidos da oposição [PSDB, DEM, PSB  e Solidariedade], o “governista” PMDB e os nanicos “salvou a redução”, resumiu um deputado. 

       Há 10 projetos no Senado que tornam mais afiadas as punições a adolescentes que cometem crimes. Na Câmara, existem 20 que alteram o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] para endurecer as medidas socioeducativas de menores infratores e 36 propostas de emenda à Constituição que reduzem a maioridade penal. Algumas se destacam: a proposta do governador paulista Geraldo Alckmin [PSDB], que está na Câmara desde 2002, por exemplo, altera parte do ECA, elevando o tempo de internação de um menor infrator de 3 para 8 anos nos casos de crimes hediondos, homicídio qualificado, estupro, sequestro e tráfico de entorpecentes. As penas seriam cumpridas em unidades especiais, separadas das destinadas aos maiores de 18 anos. O PL 7.197 prevê ainda para o adulto que induzir um menor ao crime a pena mínima de 4 anos de cadeia, e máxima de 8. Projeto semelhante, ligeiramente mais agudo, foi apresentado pelo senador tucano José Serra: o PLS 333 aumenta de 3 para 10 anos o tempo de internação do menor criminoso e do reincidente em crimes graves, praticados com violência e forte ameaça, excluindo o tráfico de drogas.

         Outra sugestão linha dura partiu de mais um senador tucano, Aloysio Nunes Ferreira: trata-se da PEC que permite à Justiça aplicar as normas do Código Penal aos jovens de 16 a 18 anos que praticarem crimes hediondos. Isso dependeria apenas da decisão de um juiz, que, caso a caso, ainda poderia consultar o Ministério Público. A regra da maioridade aos 18 anos ficaria mantida para os demais crimes, como furto. Para que adolescentes não acabem internados juntamente com bandidos, projetos que estão no Congresso preveem o cumprimento das penas em instituições especiais, separando-os dos adultos. Caberia aos Estados e à União a construção dessas unidades. Nenhuma dessas propostas foi à votação.
          
         A polêmica sobre a diminuição da maioridade penal tem servido, por sua vez, para escancarar a fragilidade das ações do Estado, seja pela falta de recursos para construir unidades que abriguem esses menores infratores perigosos [para evitar que sejam “depositados” em penitenciárias lotadas], seja pela incapacidade [por falta de estrutura e pessoal competente] para promover ações socioeducativas com os jovens criminosos com o objetivo de fazê-los deixar a vida marginal e não ter recaídas. Na Fundação Casa, ex-Febem de São Paulo, o índice oficial de reincidência é de 15%. Mas essa porcentagem é contestada pelo Ministério Público: o órgão afirma que 54% retornam ao mundo do crime. O motivo da diferença: a entidade considera reincidente apenas o jovem infrator que passa por duas internações. Para o MP, a grande maioria dos internos da Fundação Casa é reincidente, porque o Estatuto da Criança e do Adolescente só permite a internação de quem é reincidente ou tenha praticado ato infracional com violência. Já em Minas Gerais, o dilema que afetou a segurança pública em 2014 envolvendo jovens foi outro: a falta de vagas no sistema socioeducativo impediu a internação de mais de 400 menores criminosos. Eles ficaram, então, livres em várias cidades mineiras, cujos nomes constavam de uma lista mantida em sigilo.
          
          A questão aflige a sociedade brasileira porque se tornou corriqueira a participação de jovens com menos de 18 anos em crimes no Brasil. Documento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com dados de 2013, mostra que 40% dos jovens infratores respondiam por roubo (com uso de arma de fogo ou grave ameaça), 23,5% por tráfico de drogas, 8,7% por homicídio, 3,4% por furto e 2,9% por tentativa de homicídio. Outras estatísticas ajudam a compor o perfil da juventude brasileira que caiu na marginalidade. Na Fundação Casa, 71% dos internos que respondem por crimes como assassinato, latrocínio (roubo seguido de morte) e estupro têm 16 anos ou mais. Apenas 10% têm entre 13 e 14 anos de idade. A média nacional é ligeiramente inferior: dos jovens infratores que cometeram crimes hediondos, 65% têm entre 16 e 18 anos.

         Os assassinatos praticados por menores infratores em geral provocam grande comoção e têm repercussão na mídia, principalmente se as vítimas são da classe média. Em novembro de 2003, por exemplo, os estudantes Liana Friedenbach, de 16 anos, e Felipe Caffé, de 19, foram mortos em Embu-Guaçu (Grande São Paulo), quando acampavam em um sítio abandonado. Os criminosos eram liderados por Champinha, um menor de 16 anos. O assalto virou seqüestro quando os bandidos perceberam que o casal de namorados não tinha muito dinheiro vivo. Na conversa com os ladrões, Liana teria dito que o pai tinha recursos. Então, Champinha matou Felipe com um tiro na nuca numa trilha. Três dias depois, com a polícia já no encalço de Champinha, Liana foi morta a facadas na mata, após ser torturada e estuprada. À polícia, ele foi frio: “Matei porque deu vontade”.

          Detido, ele cumpriu a pena máxima de 3 anos de internação na Fundação Casa e só não foi solto porque a Justiça o declarou, ao completar 18 anos, incapaz de cuidar de si mesmo: Champinha acabou internado numa unidade psiquiátrica, “por distúrbio mental”. Depois de 12 anos, o caso ainda repercute. A Justiça decidiu, em maio último, que ele deveria permanecer internado até uma nova avaliação médica. O problema é que muitos dos menores infratores que cometem crimes graves como homicídio, sequestro e estupro não cumprem os 3 anos de internação. E mais: após cumprir a pena, o garoto volta à rua como réu primário. Já um adulto, se condenado por homicídio, pode pegar até 30 anos de cadeia, pelo Código Penal.
          
          Em tese, a redução da maioridade penal seria um inibidor à criminalidade, por supostamente diminuir a sensação de impunidade que teriam os jovens que se atrevem a correr os riscos de “viver no desvio”. No Japão, após medida semelhante, coincidentemente houve uma queda no número de assassinatos envolvendo menores de 18 anos, mas é um caso único no mundo, que não permite concluir a existência de uma relação direta de causa e efeito. A rigor, o argumento é parecido com aquele usado pelos que acreditam que a pena de morte reduz a violência. Estatísticas internacionais contrariam essa tese, mas a pena capital, de algum modo, parece atender o “desejo de justiça” dos familiares das vítimas de assassinos e “serial killers”. A pena de morte “elimina” o problema.
          
          Mas há outros motivos, não tão simplistas, que levam um jovem na adolescência, período de negação dos valores do mundo dos adultos e de autoafirmação social, a se aventurar na prática de delitos. Segundo especialistas, a família é certamente um vetor forte que concorre para isso. Destinada a transmitir valores morais e pessoais, ela exerce forte influência nos padrões de conduta, sendo crucial na formação da personalidade. Assim atitudes violentas muitas vezes são reflexos de uma infância de maus-tratos. Os recursos propiciados pela organização familiar [pais, irmãos, avós e tios] influenciam também nas habilidades infantis, que vão ecoar mais tarde no bom desempenho escolar e até no ingresso no mercado de trabalho. O envolvimento de um irmão mais velho com a criminalidade, por exemplo, pode ter influência negativa.

            Há ainda fatores externos que [embora não justifiquem] explicam o motivo que leva um jovem a entrar para uma gangue e passar a cometer delitos: a impossibilidade de haver um projeto de vida fora da criminalidade, em decorrência das desigualdades sociais. A convivência em grupo facilita ganhos concretos que ele não conseguiria por meios lícitos -- no caso dos jovens da periferia principalmente. Em grupo, ele tira proveito da força individual reforçada pela ação em bando para alcançar seus objetivos, com o uso da violência.

           Por isso, nas periferias e favelas o crime organizado é uma “tentação” e consegue atrair centenas de adolescentes para o tráfico de drogas, onde exercem o papel de “aviões” [entregador] ou de “olheiros” [vigias que avisam a chegada da polícia com o estouro de rojões]. Um menino pode ganhar até R$ 100 por dia como “aviãozinho” numa favela na periferia sul de São Paulo. Há também os casos de aliciamento de crianças e adolescentes para a realização de assaltos e sequestros. Para combater esse “recrutamento”, um projeto do senador Aécio Neves [PSDB-MG] triplica a pena para o adulto que induzir um menor a cometer um crime, ou mesmo acompanhá-lo durante uma ação violenta. Atualmente, a pena por corrupção de menores é de no máximo 4 anos de detenção. Pelo PLS 219, proposto por Aécio em 2013, a pena poderá chegar a 12 anos de cadeia.

           De qualquer modo, mesmo com a maioridade penal aos 16 anos para os casos de crimes graves, não há garantia de que os índices da criminalidade envolvendo menores devam cair de modo significativo no país – embora a medida represente para seus defensores uma “adequação” tardia da lei aos novos tempos e exista expectativa de melhora na segurança pública. Segundo pesquisa Datafolha, em junho, 87% dos brasileiros aprovavam a redução da maioridade penal para 16.       

         Já para 50 entidades brasileiras que aderiram ao movimento “18 razões contra a redução da maioridade penal”, a mudança é um retrocesso. Curiosamente, os Estados Unidos fazem o caminho inverso. Depois de endurecer, há hoje campanhas para elevar a maioridade penal para 18 anos nos poucos Estados onde ela é de 16 anos, como Nova York. Os americanos descobriram que ficou mais caro encarcerar jovens do que investir em educação ou mesmo na recuperação de infratores. As penitenciárias apenas ficaram mais cheias. O Brasil tem 600 mil presos.
  
          Não será surpresa, no caso do Brasil, se traficantes de drogas passarem a empregar meninos de 13 a 15 anos como “aviõezinhos”. Haverá no futuro como propor uma nova redução da maioridade penal, para 12 anos? Improvável. Não haverá também como construir preventivamente -- como já se diz em tom de gozação ao preconceito -- “berçários de segurança máxima”, onde seriam abrigados aqueles bebês recém-nascidos que apresentem “perfil” ou “tendência natural” à prática de crimes [um bebê homicida?], provavelmente devido a uma condição econômica familiar desfavorável.

          Há consenso entre legisladores, juristas e especialistas na questão do menor infrator que o caminho para a diminuição da criminalidade na adolescência não deve ficar reduzido à repressão. É necessário “antecipar”, ou seja, investir maciçamente em educação de qualidade, comprometida com a inclusão social [e mesmo assim não há garantia; uma amiga contou que um dia encontrou o primo, que teve educação e tudo mais, no desvio; terminou como os outros jovens marginais: morto].

         Ou você acha que a redução da maioridade penal evitará, por si só, casos como o do médico ciclista que, sem reagir, foi morto a facadas por menores durante assalto na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, em mais um crime que chocou recentemente o país?

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