segunda-feira, 6 de julho de 2015

GYÓRGY: A CINCO DIAS DE...

Gyórgy Petri [1943-2000]: o xará
                                                                          [versão atualizada]

               A cinco dias de uma cirurgia não é estranho que o medo da morte ronde os pensamentos de qualquer pessoa. É verdade, viver é muito perigoso, dizia João Guimarães Rosa (1908-1967), os riscos estão em toda parte, mas fazer uma operação [simples? complexa? tanto faz?] para tentar supostamente melhorar a qualidade de vida, aumenta a sensação de fragilidade e dá [é ruim, né?] uma espécie de choque de realidade à possibilidade de ser desligado, "puft" de repente, e ver tudo escurecer na velocidade de um toque no interruptor.

               Subitamente, poemas de Manoel Bandeira que falam da morte ganham corpo e povoam a mente. Assim como as incríveis imagens do genial e iconoclasta cineasta espanhol Luis Buñuel [1900-1983], que imagina o encontro com parentes e amigos no céu -- embora ele fosse ateu -- em um livro que prenuncia sua morte ["Meu Último Suspiro"], um ano antes dela ocorrer, Ele confessa também um desejo insólito; gostaria de uma vez a cada 10 anos ir a bancas dos jornais, saber dos desastres do mundo e depois, exausto e satisfeito, voltar sereno à proteção tranquilizadora da sepultura. Ou ainda ler e reler os versos à flor da pele do poeta húngaro Gyórgy Petri [1943-2000], que escreveu seus poemas mais poderosos durante os últimos meses do câncer que o matou mais cedo, aos 57 anos -- e que me foram apresentados por um colega de profissão, Nelson Ascher, que fez as traduções para o suplemento literário de um jornal. Reproduzo três poesias do meu xará, Gyórgy: "Que Pena", "Esqueça" e "Despedida". Embora a morte próxima esteja no foco dos poemas, o xará provoca arrepios ao tirar proveito dela para fazer, a rigor, o elogio à vida. Implacável. Cada linha é um soco no estômago e, ao mesmo tempo, um sopro nos pulmões, tamanho o impacto nos sentidos.
           
              O risco de morrer também aos 57 anos, numa cirurgia que dura cerca de seis horas [das quais pelo menos quatro acordado] talvez seja 100 vezes menor do que o de ter o celular roubado na Avenida Paulista. Cinco dias depois da cirurgia, a expectativa é de que tudo dê certo. O futuro [in]certo sempre predomina, mesmo quando achamos um jeito de viver a ilusão de que sempre estamos no leme. [não, não estamos no leme todo o tempo...] Viver é bom até o último minuto, com a intensidade energética vista nos primeiros 10 anos de vida dos nossos filhos, ainda assim tudo fica mesmo irrelevante diante dela...




QUE PENA                                                         

Que pena morrer justo quando
as coisas vinham melhorando,
mas não faz mal, reunindo em breve
chuva estival, restos de neve,
ramas com cheiro de aguardente
no outono, irei, sem que o lamente
mesclar-me às folhas, água, argila :
a encosta aguarda-me tranquila ;
quanto ainda falta e estarei junto
de Lilla e Maya é o que pergunto.
(Eu desceria à cova prontamente,
mas quem vai tomar conta
de Mari ou dar-lhe flor, assim
que os vermes nutram-se de mim?)

ESQUEÇA

Não diga que é o fim.
(Fim, afinal, do quê,
se é que tem fim de fato?)
Não diga coisa alguma
-- Algo melhor que não
Dizer coisa com coisa.
Esqueça que viveu
E tudo o que já quis.
Não é mais relevante.
Desacostume-se de ser :
Não viver é melhor.


DESPEDIDA

» Mesmo não tendo sido ouvida
É para sempre a despedida »

(N. Mihalkov, paráfrase)

Amigos, a canção chega a seu ponto
final. Adeus. Meu túmulo está pronto.
Poderia ter tido mais talento
ou trabalhado mais. Não deu. Lamento.
Se bem que acontecer desta maneira
seja um azar, admito, embora queira
viver mais, que bastou: não vale a pena
queixar-me de uma vida bela e plena.
Como esmeralda e jaspe no veludo,
meses preciosos ainda são, contudo,
gemas que ofuscam meu olhar contente;
cada aurora e manhã ainda é um presente.
Desfruto o que me resta e, glutão frente
a um gordo steak, roerei enquanto posso
meus derradeiros dias rente ao osso.

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