domingo, 5 de julho de 2015

BERÇO DE SEGURANÇA MÁXIMA A BEBÊ HOMICIDA

                



        O jovem que comete crimes com menos de 18 anos deve ser punido como os adultos?
        Com o aumento da violência, principalmente nos grandes centros urbanos brasileiros nos últimos 30 anos, essa pergunta sempre provocou debates acalorados entre legisladores, juristas e a população – que, segundo pesquisas de opinião, aprova a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Após mais de duas décadas de divergências e ásperas discussões entre parlamentares, o tema foi votado duas vezes na Câmara dos Deputados, ganhou destaque na mídia e recolocou frente a frente quem, em defesa da segurança pública, exigia mais rigor nas penas impostas aos menores infratores, cada vez mais envolvidos em assassinatos e outras ações violentas, e aqueles que consideram a redução da maioridade penal uma medida inócua -- por tirar o foco da tentativa de recuperação dos meninos e simplesmente despejar centenas de jovens pobres em prisões superlotadas, consideradas “escolas do crime”. O tiro sairia, então, pela culatra: ali, esses adolescentes de 16 ou 17 anos seriam “presas” fáceis para o crime organizado e engrossariam as fileiras das facções que dominam os presídios do país,  de onde comandam assaltos e o tráfico de drogas.

       Um acordo interpartidário e depois uma questionada manobra regimental permitiram, nos dois primeiros dias de julho, que a maioridade penal caísse para 16 anos no Brasil, mas apenas para os crimes contra a vida. A Câmara aprovou -- por 323 votos a favor, 155 contra e 2 abstenções -- um projeto de lei que determina punições mais rigorosas para maiores de 16 anos que cometam os chamados crimes hediondos, que são: latrocínio [roubo seguido de morte], extorsão que resulte em morte, sequestro, estupro [incluindo o de vulnerável], homicídio qualificado [feito por grupos de extermínio e assassinato por motivo torpe ou fútil], genocídio, causar epidemia que leve à morte, fraude e adulteração de remédios e favorecimento à exploração sexual de menores. A lei inclui também o homicídio doloso [com intenção de matar] e a lesão corporal seguida de morte. A aprovação histórica da medida contrastava com a proposta semelhante que havia sido rejeitada 24h antes pela mesma Câmara, quando obteve votação insuficiente [303 votos]. Para ser aprovada, uma Proposta de Emenda Constitucional [PEC] precisa de no mínimo 308 votos [60% dos 513 deputados]. O texto foi alterado em relação ao votado na madrugada anterior. Foram retirados do projeto os crimes de tráfico de drogas, roubo qualificado [com uso de arma de fogo] e lesão corporal grave.
      
        Houve também mudanças no texto original, que inicialmente previa a redução da maioridade penal para qualquer tipo de crime, grave ou não. Esse era, aliás, o anseio da chamada “bancada da bala” e do presidente da Casa, Eduardo Cunha [PMDB-RJ], autor de uma das 66 propostas sobre punição a menores infratores e redução da maioridade penal que estão no Congresso. Antes de ser  promulgado, o projeto deve passar por um segundo turno na Câmara e duas votações no Senado. Para a “bancada da bala”, a aprovação da redução da maioridade só para os crimes contra a vida é uma vitória, um “avanço para a segurança”. O acordo entre os partidos da oposição [PSDB, DEM, PSB  e Solidariedade], o “governista” PMDB e os nanicos “salvou a redução”, resumiu um deputado. 

       Há 10 projetos no Senado que tornam mais afiadas as punições a adolescentes que cometem crimes. Na Câmara, existem 20 que alteram o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] para endurecer as medidas socioeducativas de menores infratores e 36 propostas de emenda à Constituição que reduzem a maioridade penal. Algumas se destacam: a proposta do governador paulista Geraldo Alckmin [PSDB], que está na Câmara desde 2002, por exemplo, altera parte do ECA, elevando o tempo de internação de um menor infrator de 3 para 8 anos nos casos de crimes hediondos, homicídio qualificado, estupro, sequestro e tráfico de entorpecentes. As penas seriam cumpridas em unidades especiais, separadas das destinadas aos maiores de 18 anos. O PL 7.197 prevê ainda para o adulto que induzir um menor ao crime a pena mínima de 4 anos de cadeia, e máxima de 8. Projeto semelhante, ligeiramente mais agudo, foi apresentado pelo senador tucano José Serra: o PLS 333 aumenta de 3 para 10 anos o tempo de internação do menor criminoso e do reincidente em crimes graves, praticados com violência e forte ameaça, excluindo o tráfico de drogas.

         Outra sugestão linha dura partiu de mais um senador tucano, Aloysio Nunes Ferreira: trata-se da PEC que permite à Justiça aplicar as normas do Código Penal aos jovens de 16 a 18 anos que praticarem crimes hediondos. Isso dependeria apenas da decisão de um juiz, que, caso a caso, ainda poderia consultar o Ministério Público. A regra da maioridade aos 18 anos ficaria mantida para os demais crimes, como furto. Para que adolescentes não acabem internados juntamente com bandidos, projetos que estão no Congresso preveem o cumprimento das penas em instituições especiais, separando-os dos adultos. Caberia aos Estados e à União a construção dessas unidades. Nenhuma dessas propostas foi à votação.
          
         A polêmica sobre a diminuição da maioridade penal tem servido, por sua vez, para escancarar a fragilidade das ações do Estado, seja pela falta de recursos para construir unidades que abriguem esses menores infratores perigosos [para evitar que sejam “depositados” em penitenciárias lotadas], seja pela incapacidade [por falta de estrutura e pessoal competente] para promover ações socioeducativas com os jovens criminosos com o objetivo de fazê-los deixar a vida marginal e não ter recaídas. Na Fundação Casa, ex-Febem de São Paulo, o índice oficial de reincidência é de 15%. Mas essa porcentagem é contestada pelo Ministério Público: o órgão afirma que 54% retornam ao mundo do crime. O motivo da diferença: a entidade considera reincidente apenas o jovem infrator que passa por duas internações. Para o MP, a grande maioria dos internos da Fundação Casa é reincidente, porque o Estatuto da Criança e do Adolescente só permite a internação de quem é reincidente ou tenha praticado ato infracional com violência. Já em Minas Gerais, o dilema que afetou a segurança pública em 2014 envolvendo jovens foi outro: a falta de vagas no sistema socioeducativo impediu a internação de mais de 400 menores criminosos. Eles ficaram, então, livres em várias cidades mineiras, cujos nomes constavam de uma lista mantida em sigilo.
          
          A questão aflige a sociedade brasileira porque se tornou corriqueira a participação de jovens com menos de 18 anos em crimes no Brasil. Documento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com dados de 2013, mostra que 40% dos jovens infratores respondiam por roubo (com uso de arma de fogo ou grave ameaça), 23,5% por tráfico de drogas, 8,7% por homicídio, 3,4% por furto e 2,9% por tentativa de homicídio. Outras estatísticas ajudam a compor o perfil da juventude brasileira que caiu na marginalidade. Na Fundação Casa, 71% dos internos que respondem por crimes como assassinato, latrocínio (roubo seguido de morte) e estupro têm 16 anos ou mais. Apenas 10% têm entre 13 e 14 anos de idade. A média nacional é ligeiramente inferior: dos jovens infratores que cometeram crimes hediondos, 65% têm entre 16 e 18 anos.

         Os assassinatos praticados por menores infratores em geral provocam grande comoção e têm repercussão na mídia, principalmente se as vítimas são da classe média. Em novembro de 2003, por exemplo, os estudantes Liana Friedenbach, de 16 anos, e Felipe Caffé, de 19, foram mortos em Embu-Guaçu (Grande São Paulo), quando acampavam em um sítio abandonado. Os criminosos eram liderados por Champinha, um menor de 16 anos. O assalto virou seqüestro quando os bandidos perceberam que o casal de namorados não tinha muito dinheiro vivo. Na conversa com os ladrões, Liana teria dito que o pai tinha recursos. Então, Champinha matou Felipe com um tiro na nuca numa trilha. Três dias depois, com a polícia já no encalço de Champinha, Liana foi morta a facadas na mata, após ser torturada e estuprada. À polícia, ele foi frio: “Matei porque deu vontade”.

          Detido, ele cumpriu a pena máxima de 3 anos de internação na Fundação Casa e só não foi solto porque a Justiça o declarou, ao completar 18 anos, incapaz de cuidar de si mesmo: Champinha acabou internado numa unidade psiquiátrica, “por distúrbio mental”. Depois de 12 anos, o caso ainda repercute. A Justiça decidiu, em maio último, que ele deveria permanecer internado até uma nova avaliação médica. O problema é que muitos dos menores infratores que cometem crimes graves como homicídio, sequestro e estupro não cumprem os 3 anos de internação. E mais: após cumprir a pena, o garoto volta à rua como réu primário. Já um adulto, se condenado por homicídio, pode pegar até 30 anos de cadeia, pelo Código Penal.
          
          Em tese, a redução da maioridade penal seria um inibidor à criminalidade, por supostamente diminuir a sensação de impunidade que teriam os jovens que se atrevem a correr os riscos de “viver no desvio”. No Japão, após medida semelhante, coincidentemente houve uma queda no número de assassinatos envolvendo menores de 18 anos, mas é um caso único no mundo, que não permite concluir a existência de uma relação direta de causa e efeito. A rigor, o argumento é parecido com aquele usado pelos que acreditam que a pena de morte reduz a violência. Estatísticas internacionais contrariam essa tese, mas a pena capital, de algum modo, parece atender o “desejo de justiça” dos familiares das vítimas de assassinos e “serial killers”. A pena de morte “elimina” o problema.
          
          Mas há outros motivos, não tão simplistas, que levam um jovem na adolescência, período de negação dos valores do mundo dos adultos e de autoafirmação social, a se aventurar na prática de delitos. Segundo especialistas, a família é certamente um vetor forte que concorre para isso. Destinada a transmitir valores morais e pessoais, ela exerce forte influência nos padrões de conduta, sendo crucial na formação da personalidade. Assim atitudes violentas muitas vezes são reflexos de uma infância de maus-tratos. Os recursos propiciados pela organização familiar [pais, irmãos, avós e tios] influenciam também nas habilidades infantis, que vão ecoar mais tarde no bom desempenho escolar e até no ingresso no mercado de trabalho. O envolvimento de um irmão mais velho com a criminalidade, por exemplo, pode ter influência negativa.

            Há ainda fatores externos que [embora não justifiquem] explicam o motivo que leva um jovem a entrar para uma gangue e passar a cometer delitos: a impossibilidade de haver um projeto de vida fora da criminalidade, em decorrência das desigualdades sociais. A convivência em grupo facilita ganhos concretos que ele não conseguiria por meios lícitos -- no caso dos jovens da periferia principalmente. Em grupo, ele tira proveito da força individual reforçada pela ação em bando para alcançar seus objetivos, com o uso da violência.

           Por isso, nas periferias e favelas o crime organizado é uma “tentação” e consegue atrair centenas de adolescentes para o tráfico de drogas, onde exercem o papel de “aviões” [entregador] ou de “olheiros” [vigias que avisam a chegada da polícia com o estouro de rojões]. Um menino pode ganhar até R$ 100 por dia como “aviãozinho” numa favela na periferia sul de São Paulo. Há também os casos de aliciamento de crianças e adolescentes para a realização de assaltos e sequestros. Para combater esse “recrutamento”, um projeto do senador Aécio Neves [PSDB-MG] triplica a pena para o adulto que induzir um menor a cometer um crime, ou mesmo acompanhá-lo durante uma ação violenta. Atualmente, a pena por corrupção de menores é de no máximo 4 anos de detenção. Pelo PLS 219, proposto por Aécio em 2013, a pena poderá chegar a 12 anos de cadeia.

           De qualquer modo, mesmo com a maioridade penal aos 16 anos para os casos de crimes graves, não há garantia de que os índices da criminalidade envolvendo menores devam cair de modo significativo no país – embora a medida represente para seus defensores uma “adequação” tardia da lei aos novos tempos e exista expectativa de melhora na segurança pública. Segundo pesquisa Datafolha, em junho, 87% dos brasileiros aprovavam a redução da maioridade penal para 16.       

         Já para 50 entidades brasileiras que aderiram ao movimento “18 razões contra a redução da maioridade penal”, a mudança é um retrocesso. Curiosamente, os Estados Unidos fazem o caminho inverso. Depois de endurecer, há hoje campanhas para elevar a maioridade penal para 18 anos nos poucos Estados onde ela é de 16 anos, como Nova York. Os americanos descobriram que ficou mais caro encarcerar jovens do que investir em educação ou mesmo na recuperação de infratores. As penitenciárias apenas ficaram mais cheias. O Brasil tem 600 mil presos.
  
          Não será surpresa, no caso do Brasil, se traficantes de drogas passarem a empregar meninos de 13 a 15 anos como “aviõezinhos”. Haverá no futuro como propor uma nova redução da maioridade penal, para 12 anos? Improvável. Não haverá também como construir preventivamente -- como já se diz em tom de gozação ao preconceito -- “berçários de segurança máxima”, onde seriam abrigados aqueles bebês recém-nascidos que apresentem “perfil” ou “tendência natural” à prática de crimes [um bebê homicida?], provavelmente devido a uma condição econômica familiar desfavorável.

          Há consenso entre legisladores, juristas e especialistas na questão do menor infrator que o caminho para a diminuição da criminalidade na adolescência não deve ficar reduzido à repressão. É necessário “antecipar”, ou seja, investir maciçamente em educação de qualidade, comprometida com a inclusão social [e mesmo assim não há garantia; uma amiga contou que um dia encontrou o primo, que teve educação e tudo mais, no desvio; terminou como os outros jovens marginais: morto].

         Ou você acha que a redução da maioridade penal evitará, por si só, casos como o do médico ciclista que, sem reagir, foi morto a facadas por menores durante assalto na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, em mais um crime que chocou recentemente o país?

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