sexta-feira, 9 de setembro de 2016

DE MÃOS DADAS


         Ele caminhava pelos corredores de um shopping, ao lado do filho, rumo à praça de alimentação. E num gesto natural pegou a mão do garoto. E o menino segurou firme na trança de dedos. Um leve sorriso, uma troca de olhares. Há uma satisfação inexplicável, um certo de orgulho, no ato de dar as mãos. Este é meu pai, este é meu filho. Foi aí que ele pensou nela, de novo. Onde estarão suas mãos agora? Lembrou-se dos dedos daquela mulher tocando suavemente em seus braços. Nossa, aquilo era como uma luva macia de pelica enquanto ele dirigia o carro ou quando estavam sentados à mesa em algum restaurante. Um turbilhão de coisas veio-lhe à cabeça. Ai, que vontade de andar de mãos dadas com ela outra vez.

         Dar as mãos e caminhar juntos pode parecer banal, mas talvez seja o mais cristalino sinal de amor. Mais que o beijo, um prazer físico intenso, um frisson de olhos fechados que faz voar e sonhar. Diferente, dar as mãos e caminhar é uma quase imperceptível massagem nos dedos, causa frisson de olhos abertos e coloca os pés no chão [afinal, se sonhar é bom, viver cada dia e avançar é muito melhor]. Andar de mãos dadas é pisar nos astros distraído, como diz a letra da música mutante "Chão de Estrelas". Sim, também é um sinal de união [não de unidade, muito menos um desfile de posse].  Ele, imaginando a cena, e o garoto rumam com os dedos trançados, tranquilos, à praça de alimentação. Ai, que vontade de andar de mãos dadas com ela outra vez.

         Ele leu em algum lugar que estudos científicos feitos com o uso de ressonância magnética detectaram no cérebro uma maior redução do estresse quando se anda de mãos dadas com a pessoa amada. Onde está ela, então? Ele está chateado. Triste. Onde estão as mãos dela para aliviar tudo, repor a paz e a alegria incontida, acabar com essa angústia? Se andar de mãos dadas simboliza confiança, respeito e cumplicidade --o que sentem um pelo outro--, por que não dar as mãos e um passo atrás? A vida é curta, curtíssima, por que ser um exterminador do futuro, se a conta amorosa fecha no azul? Por que acreditar, como um profeta do apocalipse, no catastrófico "ah, não vai dar certo!", e decretar antecipadamente, com a (im)precisão dos horóscopos, o fim de um amor possível? Enquanto perguntava a si mesmo, ele caminhava com o filho, mãos dadas, rumo à praça de alimentação. Ai, que vontade de andar de mãos dadas com ela outra vez.

         Vagamente, muito vagamente, mas ele ainda sente o encaixe das palmas. Durante passeios de mãos dadas quantas vezes construíram castelos iluminados em ruas escuras, viajaram no tempo a mil quilômetros por hora em calçadões de uma avenida engarrafada e entupida de gente, ou cavalgaram nos céus ao colocar apenas os pés na areia, ou nadaram em rios transparentes quando as dificuldades pareciam deixar tudo turvo, quantas vezes entraram em temidas cavernas e acharam luz no fim do túnel, quantas vezes de mãos dadas saíram de becos sem saída, quantas vezes tocaram trombetas para afugentar a inveja alheia, ou beberam e cantaram sozinhos, com amigos ou parentes músicas para festejar "em boa companhia". Ele e o filho ainda caminham, mas estão bem perto da praça da alimentação. De mãos dadas, por quantas vitrines insensíveis eles passaram!? Ai, que vontade de andar de mãos dadas com ela outra vez.

       Há quanto tempo ela não lhe dá as mãos? Imagina. O convite é simples: vamos passear de mãos dadas? Mesmo que seja o último passeio, ou penúltimo, por que não antepenúltimo, ou ainda o primeiro de um novo tempo. Eles chegaram enfim à praça da alimentação, de mãos dadas. Ai, que vontade de andar de mãos dadas com ela outra vez.
   
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quinta-feira, 8 de setembro de 2016

A SRA. GÔNDOLA



               A geladeira está fazendo eco, de tão vazia. Conto quatro tomates, meia dúzia de latas de cerveja, uma ameixa... ah, um pote de açaí "decora" o freezer, acompanhado por uma garrafa de vódca. Não vejo frutas no cesto, fora de geladeira, claro. Torna-se imperioso admitir que a situação é grave. Tenho que ir ao supermercado, com quem mantenho uma relação de amor e ódio. Atacando as gôndolas e enchendo o carrinho, há até uma sensação de felicidade, que se esvai logo quando penso na operação toda... Entra na megafila, espera espera espera, tira tudo do carrinho no caixa. Ensaca tudo e devolve pro carrinho, tira do carrinho e coloca no porta-malas do carro, tira do porta-malas pra pegar o elevador, segura a porta do elevador com um dos sacos para tirar as compras no 14º andar. Libera o elevador. Bota tudo no chão pra abrir a porta de casa, carrega tudo pra cozinha e começa a tarefa de tirar um a um os produtos... ih, esqueci a porta do apê aberta. Fecho a porta e volto a guardar cada coisa em seu lugar... Perdeu o fôlego? Imagine eu! [quem diria, quando criança ficava feliz em ir ao super com meu pai]

              Pois, hoje é sábado,  e tenho que sair. Antes fosse para encontrar uma linda mulher, mas não, ando solitário, vou ver a Sra. Gôndola e passear entre outras tão parecidas com ela. Que chatice, um passeio de "voyeur". Ir às compras é reviver hoje o mito de Sísifo: em vez da pedra empurrada morro acima e que depois rolava morro abaixo, agora empurramos carrinhos de supermercado para encher a geladeira vazia que, para não fazer "wall wall wall" ao ser aberta, é preciso ser sempre reabastecida. Com uma diferença: além do esforço físico aborrecido, há um custo adicional mensurável no caixa, pago em papel-moeda ou com cartões e que pode dar uma tremenda dor de cabeça.

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domingo, 4 de setembro de 2016

O JANTAR E A NÉVOA



          Boa noite, onde vamos colocar a conversa em dia, meu caro? Ela sugeriu um restaurante a quatro quadras de sua casa. Foi assim, depois desse convite para jantar, que ele, de namoro recém-desfeito, foi rever uma velha amiga, que morara no exterior por três anos, mas voltara ao país havia uma semana. Seria um modo de unir o útil ao agradável. Esquecer um pouco do passado, se distrair, mudar o foco de seus pensamentos. Logo ao encontrá-la, porém, ele sentiu algo estranho, a velha amiga lembrou por uma fração de segundo um pouco da ex, mas ele tratou de disfarçar essa sensação. Vestida toda de branco e com transparências, elegante, ela exibia cabelos finos com mechas loiras, e estava enxuta de caminhadas quase diárias e alguma academia aos 46 anos, e mãe de uma filha de 18. Já à mesa, o papo sobre o momento de suas vidas só era interrompido por garfadas em camarões crocantes e levemente picantes com risoto úmido no ponto certo, em ambiente à meia-luz, com velas. Parecia que ia dar certo.

           Ele falava mais do que ela, que perguntava perguntava... e ele dizia, pausadamente, sobre os novos sonhos e projetos profissionais. Ele disparara a falar não com medo do silêncio, de dar "um branco", a sensação de vazio ou de falta de assunto que por vezes acontece hoje, principalmente nos "encontros às cegas", comuns no mundo virtual. Ali, eles já se conheciam, não havia motivo para qualquer desajuste ou saia-justa. Não havia espaço para o costumeiro o "vi, não gostei, dispensei" ou ainda o "fast-food" das aventuras nas redes de relacionamento. Ele não parava de falar. E a amiga mostrava-se mais interessada numa solução de continuidade do que o próprio "tagarela". Ela escutava com atenção suas palavras, seus sentimentos. Mas, desde o início, aquele estranhamento -- o flash da ex-namorada -- havia dado tom no jantar.
   
         De repente, assim do nada, o desinteresse tomou conta do ar. Rapidamente, então, ele pediu ao garçom para fechar a conta. Ela tentou esboçar uma reação, retomando a conversa, mas já era tarde. Para ele, tudo o que dissesse só pioraria as coisas. Qualquer palavra "errada" acentuaria as diferenças. Não era a primeira vez que isso ocorria com aquele homem. Ele sabia, seria como tivesse vergonha de estar ali. De uma hora para outra, ele olhou para o outro lado da mesa e já não havia ninguém. Só viu o vestido branco da amiga ser aos poucos engolfado por uma névoa igualmente branca, até ela simplesmente desaparecer. [No passado, quando isso ocorria, em vez de uma bruma surgir, um castelo de areia se esfarelava diante dele e tudo perdia o sentido]. Foi aí, pelo olhar distante dele, que a amiga [ou ex-amiga?] sentiu que a noite estava perdida. Ele lamentou consigo mesmo e pensou: "Não estou pronto, não estou curado, ou não é ela". Ou as três coisas juntas.

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sexta-feira, 2 de setembro de 2016

AQUELE ABRAÇO


 
              Definitivamente, não há nada igual a um abraço. O abraço apertado de um filho provoca sensações únicas, além da certeza de que um amor inigualável e incondicional está ali. Nada como o abraço fraterno de um pai, de uma mãe, de um irmão. Abraçar é como lavar a alma. Abraçar é receber sem medo, de peito aberto. Abraçar é sentir a presença, é produzir mais calor. Abraçar é aceitar, é um reconhecimento. Mas há outros tipos de abraços, de amizade, solidariedade, união. Muitas vezes é um sinal de confiança ou de agradecimento. Há momentos também em que abraçar é um jeito de explodir... de alegria. Quantas vezes abracei estranhos, homens e mulheres, em um estádio na euforia de um gol, no instante de partilhar a vitória do que quer que seja. Também é uma emoção única. Existe ainda aquele abraço de despedida, às vezes mais distante [com ou sem lágrimas] e cheio de formalidades: esse é como dançar juntinho sem se tocar, como andar na rua sem dar as mãos.
              Mas ele anda mesmo é sentindo falta "daquele" abraço. Não é qualquer abraço: é aquele apertado, apaixonado, esparramado na cama ou de pé contra a parede -- que ela lhe dava e ele se derretia. Será que ela já esqueceu o jeito de abraçá-lo? Ela ainda se lembra do primeiro abraço, ambos um pouco acanhados antes do primeiro beijo? Ele sente saudades daqueles dias na Serra da Mantiqueira. "Espere aí, me abrace de novo, sem medo, com força!", sonha. Era como se o corpo dele fosse uma peça inteira de "lego" do dela: macho-fêmea. Onde estará ela agora? Será que ela ainda pensa nele? [ele sabe que não, seja pelo que for][ele sabe que sim, mas de modo diferente]. Será que, como ele, anda abraçando travesseiros para aliviar a sua ausência? Onde foi que se perderam? Ah! Que difícil tem sido a tentativa de apagá-la da memória: um pouquinho que fosse, já seria um alívio para esse sofrimento. Ah! Que vontade ele ainda tem de dar um longo abraço silencioso, aquele sem palavras. E deixar que o laço dos braços e toque dos umbigos falem por si. Simplesmente um abraço, e pronto. E ver o que acontece. Quem sabe a magia volta, imagina.
            Bem que ele queria que esse abraço redentor fosse à beira-mar. "Nós nunca fomos à praia juntos", diz em voz alta para si mesmo. Ficou essa lacuna. E ele adora praia. Será que algum dia ainda será possível? "Será que nunca veremos juntos o horizonte, da areia?", continua. Ele sabe que não dá mais tempo. Nem se um dia dará. Ela se foi, e mandou "aquele abraço" [não o sonhado por ele], como se estivesse partindo para um auto-exílio, cumprindo seu suposto destino. Ele ficou, e só pôde dizer... boa viagem!

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O VIL METAL


            As moedas são frias, pequenas, de baixo valor unitário, mas poderosas -- como um espelho côncavo que concentra a luz e revela com clareza pendores da alma humana, alguns deles inconfessáveis. As moedas são como um falso vulcão que jorra as lavas da realidade sobre as pessoas. As moedas são cruéis: elas têm a capacidade de humilhar, de jogar na sarjeta a autoestima de quem está sem um tostão no bolso ou apenas faltando uma pratinha para pegar a condução. Você já pediu uma moedinha na rua? Se tiver coragem, peça e veja o que acontece. Conte quantos "nãos" irá ouvir, quantos olhares estranhos irão feri-lo. Se for jovem e aparentemente saudável, então, não estranhe um "sai pra lá, vagabundo!". Se for idoso ou maltrapilho, enfim...

            Bem cedo, na adolescência, por volta dos 14 anos de idade, senti na própria pele essa terrível sensação de "inexistência", ao voltar de um show de música no centro da cidade. No ponto do ônibus, percebi a falta de 30 centavos para completar a passagem. Demorei um bom tempo para tomar a decisão de apelar a alguém. Não por orgulho, mas justamente por medo das reações. Sim, é difícil, "vergonhoso", se aproximar para pedir uma  "esmola" [putz, por que comprei aquele saco de pipoca?]. Então, vencido o "dilema do vexame", eu me dirigi a um senhor bem vestido, e dei-lhe uma ligeira explicação sobre minha necessidade. Ele me olhou de alto a baixo, não pareceu acreditar na minha história e sumariamente me disse: "Não tenho!". Voltei cabisbaixo para a mureta. Mas percebi que ele me observava à distância, enquanto eu revirava de novo os bolsos da calça. Falava baixinho comigo mesmo, resmungava, reclamava com os deuses e alguns minutos se passaram. Eu já calculava quanto tempo levaria para chegar em casa a pé quando, de repente, o homem apareceu diante de mim com as moedas que faltavam. Agradeci até a última geração do sujeito, saí rindo e pulei dentro de um ônibus. 

            Outro dia, uma amiga contou, pela internet, um episódio que testemunhou na fila do bilhete do metrô. Uma moça deixava qualquer pessoa passar à sua frente, enquanto caçava moedas na bolsa. O tempo passava e ela permanecia ali fuçando. Então, ela se aproximou e perguntou se precisava de dinheiro para inteirar a tarifa. Envergonhada, ela disse: 20 centavos. Recebeu uma moeda de 25 e, com os olhos molhados, agradeceu enquanto tentava devolver os 5 centavos "de troco". Cena terrível. 

           Embora incomum, as moedas podem ter o lado caloroso. Por exemplo, um incidente dentro de uma padaria mostrou as duas faces de uma mesma moeda: levando um porta-níquel para facilitar o troco, uma amiga tomou um esbarrão na fila do pão. Sequer ouviu um pedido de desculpas e, pior, viu dezenas de moedas se espalharem pelo chão. Enquanto a moça que causou o estrago seguia seu trajeto indiferente [negando o ditado que diz que a boa educação é moeda de ouro em qualquer lugar], um atendente saiu ligeiro detrás do balcão e, ajoelhado, ajudou minha amiga a recolhê-las: "Não se pode desperdiçar. Minha mãe juntava todas em um pratinho e sempre que a gente estava em apuros tinha o pratinho em cima da geladeira pra nos salvar", revelou o gentil funcionário. 

         Dependendo do uso, as moedas podem ainda significar algo mais pesado no dia-a-dia: quem não se lembra da chuva de moedas que caiu sobre os jogadores da seleção peruana de futebol ao chegarem no aeroporto de Lima, após a estranha goleada sofrida contra a Argentina na Copa do Mundo de 1978? A acusação é de que o jogo tinha sido vendido -- o que rende até hoje discussões. Eu não tenho a menor dúvida de que a ditadura militar argentina precisava daquele "circo".

        Já a palavra "moeda", do latim moneta, deusa da mitologia romana, também ganha novos sentidos quando deixa de ser substantivo e passa a ser utilizada como adjetivo. A expressão "vou pagar na mesma moeda" é dita geralmente´por quem é bem recebido em determinado lugar e espera ser visitado por seu bom anfitrião em breve -- quando então lhe será dado tratamento semelhante ou melhor. Alguém [não me recordo quem, neste momento] já afirmou que o tempo é a moeda da vida, a única que nós temos e que só nós devemos determinar como ela será gasta. Ou seja, fique atento para não permitir que outras pessoas a gastem por você. Curiosamente, a palavra moeda [o vil metal] já foi usada na literatura para dar significado a sentimentos: "O amor é a única paixão que se paga com uma moeda que ela mesma fabrica"', segundo Stendhal, famoso escritor francês do século 19.

        Eu ainda acho que o escritor espanhol Francisco de Quevedo acertou ao comparar palavras a moedas: "Uma pode valer por muitas e muitas não valer por uma!"

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quinta-feira, 1 de setembro de 2016

O MOTORISTA E O ESTUDANTE

   
     Manhã fria de inverno, daquelas que sai "fumacinha" da boca. Era bem cedo, por volta  das 7h, e ele estava a caminho da faculdade de sociologia [sim, sonhou de "sleeping bag", diria quem o visse naqueles tempos cabeludo e contestador em plena ditadura militar]. Descera do ônibus no Vale do Anhangabaú rumo à escola e, como sempre, parou na mesma banca para ler as chamadas dos jornais pendurados, abertos como num varal para atrair leitores. Naquele dia, chamava-lhe a atenção um diário popular que, em letras garrafais, trazia de manchete um crime na cidade. Mais um entre tantos tão iguais, que ele, já acostumado, nem dava bola. Mas, de repente, estancou perplexo.

     Meses antes, caminhando pelo mesmo Vale, mas na volta para casa, em vez de estancar, havia acelerado o passo ao ouvir assobios -- daqueles que as mulheres não suportam [ou algumas gostam, sabe-se lá, tem gosto para tudo] -- seguido de "ei, psiu, psiu, psiu, você aí!". Os assobios e a abordagem o deixaram tão constrangido como uma mulher que ouve "gostooosa!" depois de um "fiuu fiuuuuu!" Naquele tempo, meados dos anos 1970, era comum essa atitude, grosseira, vinda principalmente dos canteiros de obras. São Paulo explodia em prédios e não faltavam canteiros cheios de operários trabalhando. Havia quem dissesse até que algumas mulheres gostavam de passar perto de edifícios em construção para aumentar a auto-estima [ele achava, isto sim, que era mais para uma piada de mau gosto]. Seguiu sua marcha adiante sem olhar para trás, fingindo que não era com ele. Afinal, se virasse ia ter que brigar, discutir, imaginava. Adolescente, estava muito desconfortável, quando alguém gritou bem alto o seu nome. Aí parou...

      Olhou para trás e viu um rosto conhecido rindo, gargalhando. Começou a rir também, aliviado. Sim, era Francisco, simpático motorista nordestino que havia trabalhado na sua casa, levando a mãe do rapaz para cima e para baixo. Naquele tempo, a profissão de motorista particular era comum na cidade, principalmente nos bairros de classe média e nas famílias com muitos filhos. Alguns eram contratados por empresas e cedidos às famílias de seus diretores. Francisco começou a lembrar, saudoso, daqueles dias. Fez perguntas sobre a vida do rapaz, de seus irmãos e da "patroa" etc etc. Ele admirava a mãe do rapaz, principalmente depois que teve a carta de motorista apreendida e a viu enfrentar um guarda de trânsito. Francisco discutira feio com o policial, após estacionar o carro perto de uma padaria. O guarda reteve o documento, por desacato. Irritada com o impasse, a "patroa" sentou-se ao volante e disse, decidida: "Senta aí, Francisco, e vamos embora!" O guarda reagiu e exigiu a sua carteira de habilitação. A "patroa" só mostrava o documento à distância e cobrava a devolução da licença de Francisco, que sorria por dentro. Nenhum dos dois lembrou com detalhes como se deu o desfecho mas, ânimos esfriados, o guarda devolveu-lhe a carta, não sem, claro, aplicar-lhe a multa.

       Francisco agora estava "na praça" havia três anos, dirigindo um táxi de frota. E a vida estava bem mais difícil, trabalhando dobrado, de dia e de noite, para pagar a empresa dona do veículo e ganhar o pão. Perguntado se não tinha de medo de assalto, brincou: "Tenho uma peixeira no carro". Havia se separado da mulher, que não suportara mais seus pileques [quantas vezes, a mãe do rapaz, mandou-o de volta para casa logo de manhã, quando aparecia para trabalhar já meio cambaleando, meio falando mole]. Francisco era atencioso, dirigia bem, divertido e respeitoso, mas era alcoólatra. Naquele encontro inesperado, porém, contou-lhe que depois do divórcio não bebera mais. Foi uma conversa rápida, não mais que uns cinco minutos, mas o tempo suficiente para rirem um pouco da vida e desejar mútua boa sorte. Eram duas da tarde e o rapaz voltou feliz para casa com a novidade: Francisco virara taxista.

      Naquela manhã cinzenta, porém, alguns meses após aquele reencontro, a cada passo que o jovem dava em direção à banca a foto crescia. O bigode, os traços... Ele o reconheceu. E gelou, um arrepio percorreu sua espinha ao ver o nome de Francisco no texto da manchete principal do jornal que dizia: "Taxista morto a tiros por assaltantes". Pavio curto, Francisco reagira ao assalto e dois ladrões o mataram para levar uns trocados na madrugada. O estudante tremeu vendo a foto 3x4, daquelas de carteira de identidade, impressa do tamanho de um pôster na capa daquele diário. Uma tristeza aguda tomou conta do estudante. Francisco no papel e ele ali paralisado, ouvindo ao longe o barulho das buzinas e vendo tão perto pedestres seguindo seu rumo, indiferentes, ao passar pela banca.

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terça-feira, 30 de agosto de 2016

PROCURO A SUA VOZ


        Nunca imaginei que um dia estaria procurando a sua voz. Há seis meses você não fala comigo. E, o pior, confesso, eu já me esqueci do som dela. E isso é algo que me tortura. Como em tão pouco tempo não consigo lembrar-me mais dela? Tento buscá-la através de fatos importantes de nossas vidas, mas nem assim resgato o som de sua voz. Recordo-me de frases completas, de pensamentos, mas não do som, nem o tom. Se tiver me ouvindo [eu sei que está], vou revelar, então, um segredo meio antigo: certa vez, mantive durante alguns meses uma gravação deixada por você na caixa-postal do meu celular, para poder matar a saudade quando quisesse. Mas um gaiato levou meu celular e com ele a sua voz. Hoje, após dias e dias a fio sem ouvi-la, penso como gostaria de escutá-la mais uma vez, mesmo que por apenas segundos, pelo menos um aceno de amor: "Oi, como você está, filho?", seguido de um beijo carinhoso no rosto, ou na testa. Como seria confortante.

       Quantas coisas boas você me disse, quantos pitos na infância, quantos toques na adolescência ["acho que sua vida anda um pouco desorganizada", foi o bilhete sutil que deixou na cabeceira da cama, quando eu vivia indo a festas e dormindo tarde todos os dias] e quantos conselhos na maturidade. Quantas risadas gostosas nós demos [lembra-se quando, durante uma viagem de carro a Búzios, você me acordou, à noite, em Itaboraí, para mostrar a antena parabólica gigante, toda branca, que fazia transmissões via satélite, uma novidade no início dos anos 1970? Você apontava pra antena de um lado, eu olhava para outro e dizia "estou vendo, estou vendo, que linda", para gargalhada geral, sua e de meus irmãos? Você lembra da chicotada que deu em meu rosto, sem querer, tentando acelerar o passo de um pangaré que puxava a charrete em Cambuquira? Eu chorei e você riu, meio sem graça, enquanto pedia desculpas. Hoje, dou risada sozinho desses episódios. Consigo visualizar seu sorriso mas, é terrível, não lembro mais de sua voz. Olha, moramos tanto tempo longe um do outro depois que cresci, você mudou-se para outra cidade, coisas da vida, e eu fui buscar meus sonhos, cometer meus erros e tentar encontrar o meu lugar no mundo.

       Agora, vendo-o deitado nesse leito de hospital há meses, abrindo os olhos ao chamá-lo, mas sem dizer uma palavra, qualquer que fosse, fico imaginando-o como um pássaro preso na gaiola, sozinho, triste e sem cantar. Eu sei que, rigoroso como é, não diria, mas eu adoraria que [para demonstrar sua irritação com o estado das coisas] você gritasse um palavrão. Que tal um puta que pariu!!!!!? Ou dar um basta com um caralho! Chega! Às favas com o que dizem os médicos... Lá no começo dessa tragédia, eu o vi se mexer como quem quisesse dizer algo, mas parece ter se cansado, selado dentro de si mesmo, frustrado com a condição de incomunicabilidade.Talvez eu esteja vendo demais, talvez porque o tombo que o imobilizou e o emudeceu também tenha me aberto os olhos e me roubado as palavras. O que dizer? Contar o meu dia, contar histórias, ligar a TV e assim encobrir esse silêncio tão doído. Perdão pai, se não estou te entendendo! A vontade é de gritar... mesmo que ninguém me escute, mesmo que eu pareça um louco.

      A vida, muitas vezes, vai emudecendo as pessoas. Tirando-lhes a vontade até de falar. Uma tristeza, um desapontamento, uma desatenção, um desenlace amoroso que não se espera... Às vezes o sentimento é de que a vida é uma misteriosa caixa que, aberta por um desavisado, espalhou pelo mundo todo o tipo de mal e desgraça. E pior, após o susto, fechada rapidamente, aprisionou logo seu único bem: a esperança. Não me entenda mal. Não desisti, mas a cada dia que passa sem que você diga uma única palavra, penso, quem me dera ter poderes para tirá-lo dessa clausura: o seu silêncio me silencia, é morte em vida.

 Que saudade de sua voz, pai!


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