Uma agulha no palheiro. Informação selecionada e às vezes comentada, histórias do dia a dia dos mortais, crônicas e tudo aquilo que mexe com o humor de um jornalista inconformado
quinta-feira, 1 de setembro de 2016
O MOTORISTA E O ESTUDANTE
Manhã fria de inverno, daquelas que sai "fumacinha" da boca. Era bem cedo, por volta das 7h, e ele estava a caminho da faculdade de sociologia [sim, sonhou de "sleeping bag", diria quem o visse naqueles tempos cabeludo e contestador em plena ditadura militar]. Descera do ônibus no Vale do Anhangabaú rumo à escola e, como sempre, parou na mesma banca para ler as chamadas dos jornais pendurados, abertos como num varal para atrair leitores. Naquele dia, chamava-lhe a atenção um diário popular que, em letras garrafais, trazia de manchete um crime na cidade. Mais um entre tantos tão iguais, que ele, já acostumado, nem dava bola. Mas, de repente, estancou perplexo.
Meses antes, caminhando pelo mesmo Vale, mas na volta para casa, em vez de estancar, havia acelerado o passo ao ouvir assobios -- daqueles que as mulheres não suportam [ou algumas gostam, sabe-se lá, tem gosto para tudo] -- seguido de "ei, psiu, psiu, psiu, você aí!". Os assobios e a abordagem o deixaram tão constrangido como uma mulher que ouve "gostooosa!" depois de um "fiuu fiuuuuu!" Naquele tempo, meados dos anos 1970, era comum essa atitude, grosseira, vinda principalmente dos canteiros de obras. São Paulo explodia em prédios e não faltavam canteiros cheios de operários trabalhando. Havia quem dissesse até que algumas mulheres gostavam de passar perto de edifícios em construção para aumentar a auto-estima [ele achava, isto sim, que era mais para uma piada de mau gosto]. Seguiu sua marcha adiante sem olhar para trás, fingindo que não era com ele. Afinal, se virasse ia ter que brigar, discutir, imaginava. Adolescente, estava muito desconfortável, quando alguém gritou bem alto o seu nome. Aí parou...
Olhou para trás e viu um rosto conhecido rindo, gargalhando. Começou a rir também, aliviado. Sim, era Francisco, simpático motorista nordestino que havia trabalhado na sua casa, levando a mãe do rapaz para cima e para baixo. Naquele tempo, a profissão de motorista particular era comum na cidade, principalmente nos bairros de classe média e nas famílias com muitos filhos. Alguns eram contratados por empresas e cedidos às famílias de seus diretores. Francisco começou a lembrar, saudoso, daqueles dias. Fez perguntas sobre a vida do rapaz, de seus irmãos e da "patroa" etc etc. Ele admirava a mãe do rapaz, principalmente depois que teve a carta de motorista apreendida e a viu enfrentar um guarda de trânsito. Francisco discutira feio com o policial, após estacionar o carro perto de uma padaria. O guarda reteve o documento, por desacato. Irritada com o impasse, a "patroa" sentou-se ao volante e disse, decidida: "Senta aí, Francisco, e vamos embora!" O guarda reagiu e exigiu a sua carteira de habilitação. A "patroa" só mostrava o documento à distância e cobrava a devolução da licença de Francisco, que sorria por dentro. Nenhum dos dois lembrou com detalhes como se deu o desfecho mas, ânimos esfriados, o guarda devolveu-lhe a carta, não sem, claro, aplicar-lhe a multa.
Francisco agora estava "na praça" havia três anos, dirigindo um táxi de frota. E a vida estava bem mais difícil, trabalhando dobrado, de dia e de noite, para pagar a empresa dona do veículo e ganhar o pão. Perguntado se não tinha de medo de assalto, brincou: "Tenho uma peixeira no carro". Havia se separado da mulher, que não suportara mais seus pileques [quantas vezes, a mãe do rapaz, mandou-o de volta para casa logo de manhã, quando aparecia para trabalhar já meio cambaleando, meio falando mole]. Francisco era atencioso, dirigia bem, divertido e respeitoso, mas era alcoólatra. Naquele encontro inesperado, porém, contou-lhe que depois do divórcio não bebera mais. Foi uma conversa rápida, não mais que uns cinco minutos, mas o tempo suficiente para rirem um pouco da vida e desejar mútua boa sorte. Eram duas da tarde e o rapaz voltou feliz para casa com a novidade: Francisco virara taxista.
Naquela manhã cinzenta, porém, alguns meses após aquele reencontro, a cada passo que o jovem dava em direção à banca a foto crescia. O bigode, os traços... Ele o reconheceu. E gelou, um arrepio percorreu sua espinha ao ver o nome de Francisco no texto da manchete principal do jornal que dizia: "Taxista morto a tiros por assaltantes". Pavio curto, Francisco reagira ao assalto e dois ladrões o mataram para levar uns trocados na madrugada. O estudante tremeu vendo a foto 3x4, daquelas de carteira de identidade, impressa do tamanho de um pôster na capa daquele diário. Uma tristeza aguda tomou conta do estudante. Francisco no papel e ele ali paralisado, ouvindo ao longe o barulho das buzinas e vendo tão perto pedestres seguindo seu rumo, indiferentes, ao passar pela banca.
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