Uma agulha no palheiro. Informação selecionada e às vezes comentada, histórias do dia a dia dos mortais, crônicas e tudo aquilo que mexe com o humor de um jornalista inconformado
terça-feira, 24 de setembro de 2013
MENTIRAS URBANAS 1 - CÁPSULAS ANTICONTATO
As grandes cidades brasileiras cresceram muito rápido nos últimos 50 anos, e o Brasil passou a ter uma população urbana maior do que a rural. Esse processo gerou uma série de crises. São Paulo é o retrato mais fiel desse cenário caótico. Crise na moradia, porque não há dinheiro para fazer casas para todos. No saneamento, porque [além de não render votos, por ser obra invisível] a rede de esgoto não cresce na mesma velocidade dos loteamentos clandestinos nas periferias. E crise nos transportes [motivo pelo qual escrevo esse texto] porque a [i]mobilidade urbana não se restringe à falta de mais linhas de metrô e uma melhor organização do sistema de ônibus. Há um fator cultural: o brasileiro gosta de andar de carro -- gosto que foi "exportado" à nação pelo paulistano, que é viciado em quatro rodas desde os tempos dos corsos do carnaval. Arranha-céu é outro modelo paulistano ["comprado" de Nova York e também "exportado" à nação]. Enfim, carro é sinônimo de status e prédios, de suposto progresso. Em nome desses dois totens das cidades, atrocidades urbanísticas se espalham pelo país.
São Paulo já se orgulhou dos slogans "a cidade que mais cresce no mundo" e "a cidade que não pode parar". Dois grandes equívocos dos anos 60 e 70. Pelas opções que fez, hoje paga o preço. A cidade está parada [quando se gasta uma hora de carro para trazer o filho da escola para casa, algo está muito errado]. A lei da física se impôs: dois corpos não ocupam o mesmo lugar [São 7 milhões de veículos]. Hoje se mede o tamanho dos congestionamentos por quilômetros, que já atingem com folga a casa dos três dígitos. Não existe mais "a hora do rush". Há "rush a qualquer hora". Se chover, então...
Nos anos 60, na minha infância, lembro-me, você ia de Santo Amaro ao Centro de bonde. Hoje, o mesmo trecho, onde estavam só os trilhos foram feitas as avenidas Vereador José Diniz, Ibirapuera, uma na sequência da outra. O bonde subia e descia a Brigadeiro Luiz Antonio. Por que não se fez ali, naquela época, um metrô de superfície, ladeado pelas avenidas? Havia muito espaço desocupado no entorno. Era só trocar os trilhos, colocar trens e fazer as estações [o que está sendo feito agora, mas para uma linha subterrânea a um preço estratosférico]. Por que não se fez o mesmo na avenida 23 de Maio? Não devem faltar outros exemplos desse gênero pela cidade.
Os anos 60 e 70 foram decisivos para os rumos de São Paulo: foi o período da construção de grandes avenidas, incluindo as Marginais, que deveriam ter sido feitas a um quilômetro distante das margens dos rios Tietê e Pinheiros, que hoje formariam um imenso parque linear de 40 km de extensão. Talvez o único no mundo. Agora só implodindo e explodindo coisas. Ou refazendo tudo, como no Largo de Pinheiros. Mas isso custa caro.
A toque de caixa, a prefeitura está criando atualmente vários novos corredores de ônibus. A iniciativa é boa. Os carros ficarão mais espremidos do que já estão. Torço para estar errado, mas não acredito que muita gente irá trocar o carro pelos ônibus. O metrô parece ser mais aceito pelos futuros "ex-motoristas" -- mesmo que uma de suas principais virtudes, o conforto [além da velocidade, a limpeza e a ausência de freadas bruscas], tenha piorado nos últimos tempos, com a superlotação principalmente nos horários de pico.
Já vi na TV muitos paulistanos dizendo que fariam a troca. É só pose. Pelas roupas e pelo modo de falar, dá até para perceber, nas entrevistas, que tem gente que nunca subiu num ônibus e nunca vai subir. Além disso, há outro problema [social], o preconceito. É velado, mas o contato com o povo parece incomodar muitos potenciais usuários. Boa parte da classe média e 100% dos que andam de SUV da Volvo nunca vão mudar seus hábitos individualistas. A solidão ao volante de um carro de luxo é muito mais confortável. É perfumada, tem ar-condicionado, música, celular, tevê, Facebook, "diversões" modernas praticadas quando se está retido nos engarrafamentos. Até cortar as unhas [já vi isso] está valendo para aliviar o estresse, ou para não perceber o tempo perdido dentro das "cápsulas anticontato".
Recentemente, fiz um teste [obrigatório, após uma ralada feia que dei no meu carro havia a necessidade de reparos na funilaria]: durante 10 dias fui de casa, na Vila Olímpia, ao trabalho, na Barra Funda, de ônibus e metrô. De carro, gastei de 30 a 40 minutos. De ônibus [corredor Santo Amaro-Nove de Julho] e metrô, a vantagem é econômica. Em tempo, foram de 40 a 50 minutos, incluindo dois trechos a pé. [Me surpreendi de forma positiva, mesmo gastando um pouco mais de tempo] Andei de ônibus e metrô até os meus 21 anos. Não percebi muita diferença entre o passado e o presente nos ônibus. Não estão mais sujos ou apertados do que antes. Acho até que tiveram ligeira melhora. Mas a grande surpresa foram os corredores, onde a velocidade aumentou, é perceptível. Só medidas impopulares -- e com efeitos imprevisíveis -- poderiam mudar esse cenário, forçar o paulistano reticente a mudar de costume. Mas ninguém quer mexer em vespeiro.
O carro é o vilão da vida moderna. Quem se candidata a ser o vilão dos carros e, eleitoralmente, de si mesmo?
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Parabéns pela lucidez; concordo com o que diz: a promessa de usar o transporte coletivo não passa de mentira urbana. Entretanto, é difícil abrir mão do automóvel em certas condições. Eu trabalho a quatro quilômetros de onde eu moro, distância irrisória - mas não tenho ônibus para cobrir esse percurso. Infelizmente, tenho que me sujeitar ao congestionamento ou ir a pé (o que nem sempre é possível e/ou viável). O hilário de tudo isso é que o Governo faz o possível para o cidadão comprar um automóvel (baixa imposto, estica financiamento, etc.) e depois não o deixa sair às ruas. Vai entender...
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