sábado, 15 de agosto de 2015

SEGREDOS DA CAIXA AZUL



                 Aos quase 70 anos, um homem já fez de tudo na vida  -- de estudante rebelde a guarda de estacionamento, mochileiro Brasil afora, revisor de textos, médico, aposentado -- mas ainda se surpreende ao mexer no fundo de uma gaveta esquecida no armário da garagem de sua casa. Encontra uma misteriosa caixa azul. Ao abri-la, percebe que está cheia de cartas que nem sabia que ainda existiam, que não tinham sido jogadas fora ou traçadas por traças e cupins. Ele começa a revirar tudo, abrindo envelope atrás de envelope, lendo uma a uma. Ali ressurgem velhos amores, lembranças de intensas paixões [platônicas ou não], dos tempos da juventude, saudosos e vigorosos momentos de uma vida da qual não pode se arrepender [ou pode?], mesmo nos casos em que fracassou ou ficou inerte. A leitura leva aquele homem a outros tempos, dos anos 1970 e 1980, que a memória já nem dava conta de preservar. Leva-o às nuvens, "à imensa imaginação que há em sua cabeça louca", disse a ele, certa vez, uma notável colega de trabalho.
               
         Um dos bilhetes que encontrou tratava daquelas brincadeiras comuns nas empresas em fim de ano, o "amigo secreto". Assinado por "Graúna" (claro, um apelido do jogo),  de quem tem pouca lembrança visual, exceto de ser uma morena risonha, o bilhete dizia: "Oi, adoro seu jeito bem-humorado, que é só seu. Mas que menino mais charmoso! Sabe que te encontrei uma vez numa passeata, mas você não me viu. Lá na Praça Fernando Costa... porque a polícia havia proibido manifestação contra a ditadura no Largo São Francisco". [Memórias rebeldes, dessa, ele lembrou: a praça estava tomada por policiais e uma banda da PM tocava o hino do Corinthians. Entorno uma multidão silenciosa, muita expectativa, muita tensão: até que alguém no meio do povo gritou, bem ao seu lado. 'Liberdade, liberdade!' E centenas de estudantes saíram correndo de todos os cantos, aos berros, levantaram as faixas escondidas sob as camisas e formaram uma imensa passeata, que foi reprimida logo depois com cassetetes, bombas de gás lacrimogêneo e até com cintos pelos policiais.] Outro bilhete da moça tenta facilitar as coisas: "Uma vez também te flagrei pregando um papel na porta o banheiro; '65% de aumento ou greve!'" [sim, eles trabalhavam numa grande empresa gráfica que se vangloriava de não ter greve, mas daquela vez, parou tudo. Mesmo assim ele não identifica sua amiga secreta]

           O homem também encontrou cartas bem mais temperadas. Uma delas, sem selo, provavelmente colocada pessoalmente ou por um amigo da missivista na caixa dos Correios de sua casa na Pompéia, dizia: "A vida é um grande circo. Sempre tive a certeza de que te queria. Já não te quero mais como objeto. Continuo te querendo. Pena é que eu sempre te quero quando estou sob estado alcoólico. Eu também sempre soube que gostaria. E você se põe muito inacessível, mas eu quero, quero por carta, por palavras, por teoria. E por tesão. Tesão de um beijo. Sempre soube que iria gostar de beijar esses lábios. Também tenho certeza de que você gostou" [o homem recordou; ambos tinham experimentado beijos bêbados em um boteco  da cidade, depois da faculdade, era uma boa lembrança]. E moça ainda dizia: "Você pode estar apaixonado por mil mulheres. Mas eu não estou nessas mil. Nosso caso de desencontro é raro. Gosto, porém não consigo me enroscar (não é pra sempre), só por bons momentos. Os objetos, ou os não-objetos, também gostam de se enroscar, por bons momentos. Todos, no fundo, somos iguais. Continuo lamentando o café da manhã que não tivemos. Mas você não é mais a minha frustração. Talvez eu seja a sua, vai saber! [o homem volta no tempo e decreta: ela tinha razão!]. A colega de faculdade ainda provoca: "Talvez nos frustremos juntos. Adoraria fazer outras coisas com você... mas me contento com a primeira e ótima correspondência. Não somos apaixonados, mas nos apaixonamos com nossas diferenças. Sem dilemas, não vou implorar ao dizer que estou de partida. Pois sempre em nossas cabeças estivemos partidos. Essa diferença me atrai. Por todas as suas paixões e as minhas, acredito que eu seja uma sua, como você é minha". [O homem nunca mais viu a garota, Cleusa, loira branquela, magra e muito charmosa, com nariz levemente adunco, e sentiu saudade sim, e sentiu até o gosto alcoólico daqueles beijos frenéticos, longos, desinibidos e desaforados daquela noite inconclusa, mas inesquecível]. Tempos depois, por telegrama, ela tripudiou, mas ainda alimentando esperança: "Não morra de saudades, gosto do teu beijo".

          Ele também achou um cartão-postal vindo de Paris, cuja imagem era o cartaz de "O Vento Levou", filme vencedor de 10 Oscar, e que colocou Clark Gable e Vivian Leigh de vez no Olimpo da sétima arte. Nele, Loreta revelava à distância seus desejos encarcerados: "Achei que não tinha nada a ver te mandar uma paisagem, por isso. já que nunca te beijei na boca, vai um por cartão-postal. Estou me divertindo muito, aqui é uma loucura. Escreva, desenhe, apareça, Estou te esperando"... [ele recorda: não deu para visitá-la na cidade-luz e beijá-la sob a Torre Eiffel ou triunfante namorá-la no alto do Arco do Triunfo, como um guerreiro vencedor da Bastilha. O homem sabe que a distância aumenta mil vezes a coragem de dizer coisas impronunciáveis ao vivo. sem medo de rejeição. Ele ainda pensou... jamais renegaria Loreta]

           A caixa praticamente contava, a cada carta ou bilhete, a vida amorosa turbulenta, inexata  -- e olhando no tempo -- por vezes inexistente daquele homem. Do primeiro grande amor adolescente, Patrícia, traços finos e corpo magro, mas sinuoso à moda Botticelli, escultural, havia inúmeras cartas. Havia muita angústia nelas também. "Além de todo amor e tesão, sinto por você muita ternura, me deixe sentir toda sua imensa sensibilidade que, às vezes, você tenta camuflar, como defesa própria. É assim que vou te amando cada vez mais. Não te sinto apenas quando você cobre meus seios com suas mãos quentes ou quando te acaricio todo... Adoro também te ver chegando, naquela praça no centro, sorrindo, vindo me buscar. Adoro seu sorriso largo e claro, ou quando digo, como logo acima, alguma besteira e te deixo encabulado. Adoro quando me cutuca com o nariz, como quem quer dizer alguma coisa, e diz, muitas". Em outra carta, ela diz: "Estou muito bem, e descobri quem me nutriu naqueles dias.... você e seu maravilhoso macarrão miojo" [o homem gargalha ao relembrar a história, foram longos anos juntos]. 

          Já Otília, magrela cheia de charme [que "competia" com Patrícia] não se aguentava de vontade de namorá-lo um dia escreveu 15 linhas, revelando o fogo que a queimava por dentro: "Adorei conhecê-lo. Melhor ainda saber que você está no bairro e que a qualquer momento vai estar dentro de minha casa. Espero ansiosa a cada mês do ano, pois sei que a qualquer momento você vai aparecer. Não só para mim, mas sei que sou lembrada e isto me basta. Você é perfeito: um corpo bonito e legível, um pouco preocupado com a propaganda que faz, mas muito visual. Isso me agrada. Um nome forte e lindo. Você é composto de matérias excitantes e inesquecíveis [o homem ri, "matérias"???]. Você não se importa em agradar, você é agradável. Possui carisma especial e isso mexe (e "meche") comigo. Como lê, mexe de qualquer jeito [mais risos]. Todos gostam de você, e eu também, lembra?" [o homem não se lembra do nome dela, a memória já não é mais mesma, e tem uma leve suspeita, mas não sabe com exatidão do que ela fala]. "Na hora do almoço, vejo você na mesa só comigo e te devoro sem tocar. Como é bom recebê-lo em casa". Ela ainda sugere, "apareça para um cafezinho" [homem lembra que nunca passou de um cafezinho].

            E a Dalva, que estudava para ser médica, a quem de vez em quando ele levava frutas? Já não se viam há muito tempo. Um dia, em Paraty, lembrou-se dele. "Caríssimo, diante desse lindo postal não tive alternativa senão lembrar-me de você. Fiquei sabendo que esteve à minha procura no Guarujá. Que pena não estar lá. Talvez já conheça Paraty, mas você que tem uma seleta coleção de postais do mundo todo, não poderia deixar de ter um meu" [o homem quando a conheceu, ainda ferido e refazendo-se de um desenlace, patinava. Lembra que a moça, cabelos escuros lisos e que vivia dizendo que queria se casar, se casou. A atitude enterrou o sonho dele, ao estilo "tomo uma Coca-Cola, ela pensa em casamento, e uma canção me consola". Ela se foi e ele continuou caminhando sem lenço nem documento, mas continuaram amigos e curtiram várias noites de jazz vida afora].

              Outra mulher "renasceu" da caixa azul. Regina, morena à moda local com traços orientais marcantes, mal conhecia o homem e colega de turma na faculdade, porque pouco se falaram durante os quatro anos de estudos na mesma classe. Mas dançou muito com ele na festa de final de diplomação -- e um sítio fora da cidade. Perdendo a habitual timidez, mas com a discrição japonesa, deixou sem que ninguém visse um bilhete no bolso do casaco dele. "Você é o maior barato, se pintar vontade, telefona!". Um mês depois, ela enviou um postal de Natal: "Foi tão bonita aquela dança. Aconteceu no momento certo. Me lembro de tudo e acho graça. Acho terno. Acho que entendi errado simplesmente. Estava fantasiando a partir de uma atitude normal. Caí em mim. Estou tão bem, como disse besteiras na última vez que nos vimos! Suprema vergonha. Guarde só o momento mágico da descoberta de uma pessoa [o homem tem nítida recordação da festa e dela, e da loucura, mas não ligou, e hoje se lamenta, nem que fosse só para dizer que não havia motivo algum para ela se envergonhar].
   
              Nova emoção. "Estive aqui, não volto nunca mais, adeus!", disse Gilda, loira, olhos verdes, em bilhete deixado no portão de casa daquele rapaz, para provocá-lo a aparecer na casa dela naquela noite. Ela sabia o efeito que o recadinho teria [o homem adorava aquela loira vulcânica e inspiradora. à noite, não deu outra, tocou a campainha da casa dela e fizeram sexo faminto no chão da cozinha]. Outra emoção foi quando viu o bilhete de Carla: "Não estou entendendo nada!" [ele nunca esqueceu dos cabelos cacheados e da noite em que entraram de roupa e tudo nas ondas de uma praia famosa do Guarujá]. O bilhete tinha um motivo triste. Ele sumira porque achara que faltava algo mais no relacionamento. Ela não era possessiva. Mas ficaram amigos, como antes. Ternos amigos.  

             Ao ler essas cartas e bilhetes, ele sentiu fortes emoções e seu coração bateu descompassado. "Como gostei dessas mulheres", pensou. Depois que acabava cada namoro juvenil, até aquele que mal começara e já terminara, sempre achava que jamais encontraria outra igual. Coisas da adolescência. Logo depois, ele fechou a caixa azul, guardou-a para novos achados no dia seguinte, ou outro dia qualquer. Uma cartinha, porém, ainda estava fora: era a de Selma, com quem mergulhara por acaso no mar de Bertioga. Era curta. Foi a primeira e única vez que se viram. E nada afinal havia acontecido entre eles, além de sutis e sugestivos esbarrões de pernas no balanço das ondas e a troca de algumas palavras. "Não tenho muito a escrever, mas tenho na lembrança o sorriso maroto e espontâneo que tanto me cativou. Pena que o tempo acelerou e quando me dei conta estava na hora de sair da água, deixando para trás minhas fantasias" [até hoje ele imagina como teria sido fora d'água]. O homem recolocou o bilhete dentro da caixa, fechou-a novamente e minutos depois morreu do coração, abatido por um ataque cardíaco fulminante em casa, sozinho. Foi enterrado por um punhado de familiares, seus irmãos. 

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