São Luis mudou o nome do Beco da Bosta |
Dar nome a avenidas, ruas, praças, pontes, viadutos, elevados, túneis, estradas e aeroportos é o "esporte" predileto de vereadores, prefeitos e governadores no Brasil todo -- principalmente se for de parentes. Como as ruas só podem ganhar nomes de mortos, trata-se de uma homenagem. Em geral, é uma iniciativa dos vereadores, que assim angariam votos no seu "curral eleitoral". Mas não só deles: a avenida Salim Farah Maluf e o túnel Maria Maluf revelam bem o espírito público das autoridades brasileiras, no caso o de um ex-prefeito paulistano [Paulo Maluf deu o nome do pai à Avenida Tatuapé e o da mãezinha querida ao complexo de dois túneis que ligam a Avenida dos Bandeirantes à Via Anchieta. Aliás, para agradar o primo mudou o nome da Avenida Água Funda, antiga trilha dos índios tupiniquins, para Ricardo Jafet]. Décadas atrás, prefeito por apenas "três dias", o vereador Brasil Vitta não perdeu tempo: mostrou todo o seu amor filial ao dar à Rua Islândia, no Jardim Europa (zona oeste), o nome de Angelina Maffei Vitta, imigrante italiana, reconhecida, sim, por seu trabalho na comunidade da Mooca (zona leste). A Islândia não tinha embaixada no país.
Nomear locais foi, digamos assim, o "GPS das antigas", a forma que homem encontrou para ter pontos de referência em terra, para se localizar e marcar distâncias, para contar e preservar sua história ou a memória de um lugar ou acontecimento. No Brasil, para variar, a coisa foi distorcida. Em vez de preservar a história, as mudanças sucessivas e casuísticas de nomes de ruas tratam mesmo é de apagar a memória das cidades. Por exemplo, quando conheci pela primeira vez São Luis do Maranhão, no final dos anos 1970, a cidade histórica, todo o centro praticamente, tinha ruas com nomes muito curiosos, que contavam a vida no tempo da colônia -- ouvir um guia daquela época era divertido e instrutivo.
Havia o Beco da Bosta, por exemplo. Ruela em descida leve, bem estreita, que no período colonial servia de passagem para os escravos levarem tonéis de excrementos das famílias da cidade e jogá-los na maré. Era o único modo de despejo à época, já que não havia rede de coleta de esgoto [e ainda não há, só que em vez de "tigres" ou "cabungos", como eram chamados esses negros escravos, agora são encanamentos que levam toda a merda ao mar]. Hoje apenas 10% do esgoto da São Luis é tratado antes de ser lançado ao mar ou rios. No dicionário, "cabungo" é um utensílio de madeira usado para recolher fezes. Também tem outro significado, mais cruel: sujeito irrelevante, ou sujo, e pessoa que não merece consideração. Hoje, quem passa pelo Beco da Bosta, não fica sabendo desse glorioso passado porque virou a Travessa 28 de Setembro, dia da assinatura da Lei do Ventre Livre. "É, os moradores não queriam mais ter esse nome", contou-me um taxista, há quatro anos. A verdade é que esconderam um fato histórico ruim por um menos ruim, "higienizaram" o nome, que é menos conectado ao cotidiano brutal da colônia.
Escravos desciam rua com tonéis de cocô |
O Beco do Quebra-Bunda também não existe mais. Despenhadeiro na esquina da Praça João Lisboa com a Rua Formosa (Afonso Pena), quem passava por ali corria o risco de cair no chão. Um engenheiro tentou resolver o problema das quedas, fazendo cortes na Rua João Vital. A obra não surtiu efeito. Hoje ninguém sabe ninguém viu, e o local é chamado de Beco da Pacotilha, devido ao fato de o prédio de azulejos verdes, na esquina, ter abrigado um famoso jornal do século 19. Já o Beco da Caga Osso ainda existe: devido a um italiano, cujo nome, Cagliostro, o ludovicense não conseguia pronunciar: passando a chamá-lo "Caga Oss".
Em 8 de setembro, aniversário da São Luis, que tem mais de 400 anos, a prefeitura faria um bem se mudasse todas as placas do centro velho para manter a história viva. Na placa da Travessa 28 de Setembro deveria constar [antigo Beco da Bosta]. Isso deveria ser feito em todas ruas em que houve mudanças de nome no centro histórico, inclusive naquelas em que o velho nome não causa qualquer constrangimento ao morador. Os turistas ficariam gratos.
Erro de pronúncia gerou nome do Beco do Caga Osso |
Em São Paulo, a prática de apagar o passado também é feroz. Vamos às pontes: ponte Engenheiro Roberto Zuccolo? Você sabe qual é? É a velha Ponte Cidade Jardim. Zuccolo foi o "pai do concreto protendido" no Brasil. Mas por que virar nome de ponte, se já é nome de avenida? Todas pontes sobre os rios Pinheiros e Tietê deveriam ter só os nomes populares; pontes do Socorro, do Morumbi, Cidade Jardim, Cidade Universitária, Freguesia, Vila Maria... A antiga Estrada da Boiada virou Diógenes Ribeiro de Lima, em Alto de Pinheiros (zona oeste). Por quê? Não tenho a menor ideia. Por exemplo, a Avenida Água Espraiada ganhou o nome de Jornalista Roberto Marinho em clara tentativa da ex-prefeita Marta Suplicy de ganhar apoio no noticiário da emissora de TV de maior audiência no país -- e que havia modernizado sua sede em São Paulo e mudado para a zona sul. A antiga Avenida Central, que dividia ao meio o Brooklin Novo, virou Padre Antonio José dos Santos (pároco que organizava no pátio de uma igreja a melhor festa junina do bairro). Com o perdão do padre, Avenida Central fazia mais sentido. Até 1931, antes da Segunda Guerra Mundial, no bairro do Campo Belo, reduto de imigrantes alemães, muitas ruas receberam nomes de líderes e empresários daquele país. A atual rua Gil Eanes chamava-se rua Adolf Hitler, até 1935 pelo menos, quando São Paulo absorveu o município de Santo Amaro. Alguém teve o bom-senso de tirar o nome do genocida.
Como no Brasil há o péssimo hábito de mudar os nomes das ruas, vai-se destruindo boa parte da simbologia histórica contida na nomenclatura das ruas, atendendo a interesses políticos. Muitas ruas que tinham nomes que faziam alusão ao regime monárquico foram alteradas para nomes neutros ou republicanos, com o advento da República. Em 2015, a Prefeitura de São Paulo anunciou a intenção de alterar os nomes de 22 ruas que homenageiam a ditadura militar (1964-1985) ou pessoas ligadas à repressão. Os primeiros nomes a serem mudados seriam o da Avenida Golbery do Couto e Silva, um dos ideólogos do golpe de 1964, no Grajaú (zona sul), e o Viaduto 31 de Março (centro). A avenida passaria a chamar Padre Giuseppe Pegoraro. religioso ligado ao bairro, e o viaduto ganharia o nome de Thereza Zerbini, líder do Movimento Feminino pela Anistia, que lutava contra a ditadura.
Praça Marechal Deodoro antes do "Minhocão" |
O Elevado Costa e Silva, o "Minhocão", passou a se chamar recentemente João Goulart, em homenagem ao ex-presidente deposto pelo golpe militar de 1964. O general Costa e Silva, ex-presidente durante a ditadura, foi que promulgou em 13 de dezembro de 1968 o AI-5, ato institucional que cassou direitos civis e políticos e aprofundou a censura e a repressão. Mais simbólico seria derrubar o "Minhocão", e tentar devolver à região a beleza quase européia que já teve [com uma diferença: com o novo nome -- que ironia -- seria como se Jango fosse derrubado pela segunda vez]. Na lista dos 22, generais, policiais e médicos legistas envolvidos, direta ou indiretamente, em desaparecimentos e torturas dão nomes a ruas paulistanas. Sinceramente, quem tortura e mata não mereceria dar nome a ruas e praças. Deveria estar só nos livros para não ser esquecido. Alguém vai dizer: como saber que o homenageado de hoje será a "persona non grata" de amanhã? Cada caso é um caso. Se querem ter seus nomes públicos, que tal ser criada a Praça dos Torturadores, perto da Rua Tutóia, onde existiu eficiente centro de torturas a oposicionistas. Ali sim faria sentido, poderia haver lá uma lista de quem manchou a história brasileira com sangue.
É sempre bom lembrar que a queda ou o fim podre de um regime geralmente provoca mudanças. Quem era herói vira vilão e vice-versa. São Petersburgo tornou-se Leningrado com a Revolução Russa. Com o fim do comunismo, a população optou, em plebiscito, pela volta do nome original. Já Stalingrado passou a chamar-se Volgogrado em 1961, quando o sanguinário ditador Josef Stalin, responsável por milhares de mortes de supostos inimigos políticos, caiu em desgraça dentro do regime. Mas devido à famosa e sangrenta Batalha de Stalingrado, que praticamente definiu a Segunda Guerra Mundial na frente oriental, quando o Exército Vermelho resistiu e depois empurrou os nazistas até Berlim, há forte pressão para que Stalingrado volte aparercer nos mapas. Há alguns anos, o governo russo decidiu que o nome de Stalingrado deve ser mantido.
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Excelente texto, George. E bem ilustrado também. A história dos becos ("da Bosta", "do Quebra Bunda" e do Caga Osso") é um achado. Muito legal mesmo. Acho que, além do seu blog, você poderia tentar publicá-lo em outro lugar. Peguei um errinho: um ponto, ao invés de vírgula, depois de Pegoraro. "A avenida passaria a chamar Padre Giuseppe Pegoraro. religioso ligado ao bairro". Abraço, Eurico
ResponderExcluirObrigado, Eurico
ExcluirBelo resgate da memória brasileira, tão vilipendiada nos dias de hoje!
ResponderExcluir"Texto sensacional " queria só entender por que aqui aonde moro , antigo reduto Guarani, virou rua Constantinopla, Ulisses,Homero,Penélope e Galileu Galilei ???? Seríamos nós um dia isso????rs beijo Angelica
ResponderExcluirEm São Paulo há o Ponto da Pipoca e o Largo do Peixe, na Vila Dalila, Zona Leste. Houve, não sei quando nem onde, a Trilha do Caga em Pé, por ser muito estreita. Em Diadema, devido ao nome de uma popular padraria, o bairro Ponto Certo.
ResponderExcluirOnde ficava , se existiu, a rua da merda aqui em São Paulo? Algum time de futebol foi fundado aí?
ResponderExcluirPor que uma rua de anos e anos tem o mesmo nome de ponta a ponta, de repente o final dela é mudado? Exemplo: rua Turiassu desde o começo e chegando perto do Palmeiras muda o nome para rua Parque Antártica. Perante a lei , é legal?