É desses gestos que ele se lembra. Do cheiro dos cabelos enquanto repousa sua cabeça no ombro dele após uma delicada sequência de beijos sequinhos -- ou mesmo só por sono. É de sua mão percorrendo o contorno da face com suavidade, como quem identifica e faz a "colheita de rosto", antes da entrega. É daquele abraço apertado sem muita explicação ou justificativa ao revê-lo. Aquele olhar ressabiado entre aspas ao dar uma opinião, esperando uma resposta. Da calma extrema de pensar e agir nos momentos em que parece que um cano estourou ou que o mundo parece desabar. É da nitidez dos sentimentos e da clareza das palavras ditas de forma pausada, quase soletradas. É disso que se lembra. É da mania paulistana de, às vezes, comer os "plurais". Ao inferno com as concordâncias verbais, devoradas pelo hábito, se o que importa é o sentido. É disso que se lembra. É de estar presente e tranquila quando para ele o mundo travava. Ou de não se importar muito com isso. Ou só dizer com doçura "anda direito homem" [e aquilo ter o efeito de uma ordem divina]. Ou fazer piada e rir de "seu ratinho" a caminhar... psssspsss É disso que sempre se lembra. É da felicidade de receber flores e um vidro de temperos. E do olhar iluminado ao comentar sobre viagens que gostaria de fazer? [pena que se quer deu tempo de planejá-las]. É das sessões de cinemas luxuosos, onde dois filmes aconteciam, um na tela e outro no sofá da sala de projeção, marotos no escurinho. É disso que se lembra. Do perdão, às vezes demorado e estridente, por desapontamentos. É disso que se lembra. É do passeio de bicicleta que virou uma corrida contra o relógio atrás da cria em desenfreada carreira no parque. É do sorvete que ele sonhava que gostaria, mas que ela não gostou tanto. E do "tá bom", quando concordava discordando. É de repetir o nome dele soletrado e com entonação, antes de falar de algo importante, para o qual queria chamar a atenção. De fazer comida com gosto para agradar o paladar de outros. É disso que se lembra. É de fazer [de vez em quando] troça de coisas sérias. Rir do que supostamente não se podia [ou pode] rir. Não por maldade, não dos outros, mas de si mesmo. De trajar um vestido ao contrário por achar mais bonito assim e pronto. É disso que se lembra. Da habilidade de contornar chatos e chatices com diplomacia. De acordar tarde quando tinha dito que era preciso sair cedo para viajar. De quebrar regras, de repente, a moral e os bons costumes só como diversão boba, e rir disso. É disso que se lembra. De bilhetes saudosos, ou recados digitais como "ai, que vontade de morder" ou "eu preciso te ver por motivo urgente"... De ficar molhada da chuva sem se importar ao receber flores em casa, quando tudo parecia perdido, jogado por terra, sob a pá de cal. É do último beijo que se lembra. Procura-se um sorriso largo e bonito. Procura-se a felicidade.
É disso que aquele homem se lembra. De pequenos gestos diários. Não, não quer lembrar mais, quer voltar a viver. E a vida dá voltas. Mas tem volta? A vida [revira e] volta? E o ombro dele agora está vazio. Dá de ombros? Do que se lembra mais, sei lá! Repete: de vê-la receber, mezzo alegro mezzo andante, lembranças de viagem e um buquê de rosas à noite de um domingo ensopado no portão de casa [de novo, quando tudo parecia perdido, jogado por terra, sob uma pá de cal]. Outra vez, é do último beijo que se lembra. E não esquece jamais o gosto, agridoce.
Discordâncias? Inúmeras, mas pouco importam agora. Não se vive delas, não se leva nada delas.
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