Imagine um homem que é pego no supermercado furtando um pacote de bolachas para saciar a fome. Ou uma câmera na farmácia que filma uma mãe, com bebê no colo, escondendo na bolsa um remédio que aliviaria a cólica de seu filhote. Ou um pai desempregado flagrado com uma lata de leite em pó que surrupiou, numa gôndola da vendinha do bairro, para estancar o choro famélico da sua filha? Nos três casos os envolvidos, depois de devidamente humilhados, muitas vezes publicamente, seriam detidos e, mais tarde, provavelmente, pagando fiança, liberados pela polícia. Assim a figura do que se chama "estado de necessidade" parece dar conta do efeito, embora não da causa -- a pobreza, a falta de educação e outras mazelas em que o Brasil é pródigo. Pelo menos, assim, que a justiça seja feita. Afinal, não se trata de furto de xampu ou de um relógio Rolex.
Não fiz direito, mas aprecio situações dífíceis e embaraçosas em que fazer justiça não é algo tão evidente, tão cristalino. Por exemplo: se um homem furta um carro, que está com a janela aberta e a chave no contato num estacionamento, para levar o filho para hospital numa emergência, qual crime ele cometeu? Para mim, nenhum. Só terá de pagar algo, se bateu o carro no caminho. Existe um ditado, em latim, que nunca esqueci e que é aplicável em muitas situações: "Summum jus, summa injuria". Significa "o máximo de justiça pode ser uma grande injustiça". Ou seja, quando um juiz, em determinados casos, aplica a lei ao pé da letra, sem qualquer flexibilidade, ele pode cometer uma tremenda injustiça. E o juiz [acredito, à revelia de outros] existe não só para aplicar a lei, mas sim também para fazer justiça. Porque a gente sabe que nem tudo que é justo é legal, e nem tudo o que é legal é justo.
Aos fatos. Se a justiça dos homens enfrenta dificuldades na mediação de conflitos humanos de toda ordem, pelo menos no Brasil, a coisa parece ficar pior quando envolve as relações entre dois tipos de animais -- nós e os bichos. Um episódio chamou a atenção no noticiário dos últimos dias -- na verdade, desde o último sábado (3 de agosto). Aconteceu em São Carlos, interior paulista. Após denúncia, "Chico", um macaco-prego, foi retirado de uma idosa de 71 anos, Elizete Farias Carmona. Ela contou que cuidava do primata há 37 anos como se fosse um filho -- e chegou a passar mal na hora do cumprimento da ordem judicial, a apreensão do animal pela Polícia Ambiental. "O Chico se agarrou ao pescoço da minha mãe e não queria soltá-la", disse o filho humano de Elizete, que precisou ser levada às pressas a um pronto-socorro, porque sua pressão caiu e ela desmaiou. A família -- que alegou não ter encontrado uma licença ambiental obtida há 20 anos para manter o bicho em casa -- espera que um advogado ajude a recuperar "Francisco Farias Carmona", o nome completo deste macaco, assim batizado pela dona, que declarou ter recebido "Chico" como um presente de um caminhoneiro amigo, vindo de Mato Grosso.
A criação de animais silvestres em cativeiro é proibida por lei federal. O governo, por meio do Ibama (órgão nacional do meio ambiente e recursos naturais), cumpriu sua missão -- com atraso de apenas 37 anos. Trata-se de um crime ambiental que pode valer cadeia por até um ano, além de multa ao criador. Ao pé da letra, Elizete deveria ter sido presa? Ela representa um mau exemplo, dirão, com razão, ecologistas e defensores da fauna. O macaco-prego, também conhecido popularmente por mico, é um dos animais ameaçados de extinção no planeta. É abominável o mercado de animais silvestres. Mas após 37 anos em "convívio familiar", quanto tempo demoraria para ensiná-lo a viver de novo, em bando, na floresta? Ele conseguiria? A vida de um macaco-prego dura cerca de 40 anos. Dois abaixo-assinados na internet pedem a devolução do animal à dona Elizete. Os argumentos são consideráveis. Um deles: "Antigamente era uma prática cultural. A gente sabe que não é o correto, mas ela não fez por maldade, não o maltratou, só quis cuidar”, disse uma das líderes do documento pela volta de "Francisco".
O macaco-prego é tido como um dos primatas mais inteligentes porque, na natureza, gasta parte do dia procurando ferramentas, como pedras e galhos de árvores, que usa para obter alimentos com mais facilidade. De porte médio, ele pesa entre 1,3 kg e 4,8 kg, e se adapta com rapidez à vida com humanos. O nome deve-se ao formato de prego que tem seu pênis, quando ereto. Até ser apreendido, "Chico" fazia jus ao nome. Segundo a vizinhança, ele adorava mandar beijinhos para as moças.
O que as moças não sabiam -- aliás, ninguém sabia -- é que "Chico" na verdade é "Chica", segundo os veterinários que examinaram o animal. Que mico! É claro que, talvez, seja imperativo exigir, como condição de retorno, melhorias nas condições de abrigo do animal no quintal da casa de dona Elizete -- com um recinto maior cercado por tela, para que o macaco fique solto -- assim como deva ser passada uma dieta adequada. Mas, com a licença dos ecologistas e defensores da fauna,
summum jus, summa injuria. Neste caso, devolvam "Chica" à sua dona.
[uma semana depois deste artigo ser publicado, a Justiça determinou a devolução do macaco à dona Elizete, condicionando melhorias no abrigo do animal e na alimentação]
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