Com perfumes fortes, familiares tentam disfarçar o cheiro dos parentes mortos no Cairo. O massacre de pelo menos 638 egípcios repercute no mundo. Os cadáveres, lado a lado, que aparecem em fotos e vídeos, estão descobertos ou cobertos por panos encharcados de sangue. Esse cenário macabro me fez lembrar de outro massacre, próximo a nós, ocorrido também por uma ordem do Estado, na Casa de Detenção de São Paulo, ou Carandiru. Em 2 de outubro de
O odor da morte a gente nunca esquece. Fica impregnado nas narinas, são precisos dias e dias, banhos e banhos para não senti-lo mais. Até hoje me lembro, ainda que vagamente, do cheiro de sangue nas celas e corredores do Carandiru [é meio parecido como parar de fumar, mesmo após alguns meses o vício se manifesta, vindo à boca um leve gosto de cinzeiro].
Visitei, junto com uma comissão de direitos humanos, o pavilhão 9 um dia depois do massacre, com o presídio "limpo", com esguicho. Os corredores escuros e o piso molhado, cheio de poças meio avermelhadas, ainda estão vivos na minha memória. Além do forte cheiro de morte, havia marcas do embate entre PMs e presidiários. Em várias celas, vi marcas lineares de tiros na parede da janela, como se alguém tivesse aberto a porta do cubículo e dado uma rajada de metralhadora, na altura do peito. Aqui morreram 5, aqui morreram 8. Havia também sinais de fogo, colchões tinham sido incendiados pelos presos, para inibir a tropa militar. Enfim, cela por cela, evidências do abuso de poder. Saí dali com duas impressões. A primeira: não há perfume que faça sumir o odor "agridoce" da morte -- ligeiramente parecido com o que você sente num açougue. Depois: se o Estado democrático pode matar presos cumprindo pena sob sua custódia, eu posso comprar uma arma e me defender. Seria a guerra civil.
[Em tempo: o Carandiru foi parcialmente demolido em 2002. Virou parque]
A seguir, um resumo do inferno egípcio
Quem não se lembra das grandes manifestações na Praça da Libertação (Tahrir), no Cairo, de janeiro a fevereiro de 2011, a chamada "primavera egípcia". Milhares de pessoas pediam a queda de Hosni Mubarak, que comandava o país havia 33 anos. Houve 850 mortes, mas a pressão das massas derrubou o ditador. Naquela multidão havia unidade de objetivo, mas ela escondia uma fenda profunda na sociedade egípcia. De um lado, jovens em busca da modernização do Egito (de certo modo sua ocidentalização) e de outro os islâmicos, que acabaram ganhando a primeira eleição democrática pós-Mubarak. No fim daquele ano, foi eleito Mohammed Mursi (da Irmandade Muçulmana).
A paz durou 12 meses. Com o fraco desempenho da economia e medidas próprias de governos teocráticos, a decepção com o governo Mursi chegou cedo para a oposição secular, que levou as massas de volta à Praça da Libertação. Mursi acabou deposto pelos militares. Daquela primavera, não há mais nenhum sinal. O que se vê é um banho de sangue: é uma guerra civil.
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