Uma agulha no palheiro. Informação selecionada e às vezes comentada, histórias do dia a dia dos mortais, crônicas e tudo aquilo que mexe com o humor de um jornalista inconformado
quarta-feira, 7 de agosto de 2013
DEVOLVAM O MACACO "CHICO"
Imagine um homem que é pego no supermercado furtando um pacote de bolachas para saciar a fome. Ou uma câmera na farmácia que filma uma mãe, com bebê no colo, escondendo na bolsa um remédio que aliviaria a cólica de seu filhote. Ou um pai desempregado flagrado com uma lata de leite em pó que surrupiou, numa gôndola da vendinha do bairro, para estancar o choro famélico da sua filha? Nos três casos os envolvidos, depois de devidamente humilhados, muitas vezes publicamente, seriam detidos e, mais tarde, provavelmente, pagando fiança, liberados pela polícia. Assim a figura do que se chama "estado de necessidade" parece dar conta do efeito, embora não da causa -- a pobreza, a falta de educação e outras mazelas em que o Brasil é pródigo. Pelo menos, assim, que a justiça seja feita. Afinal, não se trata de furto de xampu ou de um relógio Rolex.
Não fiz direito, mas aprecio situações dífíceis e embaraçosas em que fazer justiça não é algo tão evidente, tão cristalino. Por exemplo: se um homem furta um carro, que está com a janela aberta e a chave no contato num estacionamento, para levar o filho para hospital numa emergência, qual crime ele cometeu? Para mim, nenhum. Só terá de pagar algo, se bateu o carro no caminho. Existe um ditado, em latim, que nunca esqueci e que é aplicável em muitas situações: "Summum jus, summa injuria". Significa "o máximo de justiça pode ser uma grande injustiça". Ou seja, quando um juiz, em determinados casos, aplica a lei ao pé da letra, sem qualquer flexibilidade, ele pode cometer uma tremenda injustiça. E o juiz [acredito, à revelia de outros] existe não só para aplicar a lei, mas sim também para fazer justiça. Porque a gente sabe que nem tudo que é justo é legal, e nem tudo o que é legal é justo.
Aos fatos. Se a justiça dos homens enfrenta dificuldades na mediação de conflitos humanos de toda ordem, pelo menos no Brasil, a coisa parece ficar pior quando envolve as relações entre dois tipos de animais -- nós e os bichos. Um episódio chamou a atenção no noticiário dos últimos dias -- na verdade, desde o último sábado (3 de agosto). Aconteceu em São Carlos, interior paulista. Após denúncia, "Chico", um macaco-prego, foi retirado de uma idosa de 71 anos, Elizete Farias Carmona. Ela contou que cuidava do primata há 37 anos como se fosse um filho -- e chegou a passar mal na hora do cumprimento da ordem judicial, a apreensão do animal pela Polícia Ambiental. "O Chico se agarrou ao pescoço da minha mãe e não queria soltá-la", disse o filho humano de Elizete, que precisou ser levada às pressas a um pronto-socorro, porque sua pressão caiu e ela desmaiou. A família -- que alegou não ter encontrado uma licença ambiental obtida há 20 anos para manter o bicho em casa -- espera que um advogado ajude a recuperar "Francisco Farias Carmona", o nome completo deste macaco, assim batizado pela dona, que declarou ter recebido "Chico" como um presente de um caminhoneiro amigo, vindo de Mato Grosso.
A criação de animais silvestres em cativeiro é proibida por lei federal. O governo, por meio do Ibama (órgão nacional do meio ambiente e recursos naturais), cumpriu sua missão -- com atraso de apenas 37 anos. Trata-se de um crime ambiental que pode valer cadeia por até um ano, além de multa ao criador. Ao pé da letra, Elizete deveria ter sido presa? Ela representa um mau exemplo, dirão, com razão, ecologistas e defensores da fauna. O macaco-prego, também conhecido popularmente por mico, é um dos animais ameaçados de extinção no planeta. É abominável o mercado de animais silvestres. Mas após 37 anos em "convívio familiar", quanto tempo demoraria para ensiná-lo a viver de novo, em bando, na floresta? Ele conseguiria? A vida de um macaco-prego dura cerca de 40 anos. Dois abaixo-assinados na internet pedem a devolução do animal à dona Elizete. Os argumentos são consideráveis. Um deles: "Antigamente era uma prática cultural. A gente sabe que não é o correto, mas ela não fez por maldade, não o maltratou, só quis cuidar”, disse uma das líderes do documento pela volta de "Francisco".
O macaco-prego é tido como um dos primatas mais inteligentes porque, na natureza, gasta parte do dia procurando ferramentas, como pedras e galhos de árvores, que usa para obter alimentos com mais facilidade. De porte médio, ele pesa entre 1,3 kg e 4,8 kg, e se adapta com rapidez à vida com humanos. O nome deve-se ao formato de prego que tem seu pênis, quando ereto. Até ser apreendido, "Chico" fazia jus ao nome. Segundo a vizinhança, ele adorava mandar beijinhos para as moças.
O que as moças não sabiam -- aliás, ninguém sabia -- é que "Chico" na verdade é "Chica", segundo os veterinários que examinaram o animal. Que mico! É claro que, talvez, seja imperativo exigir, como condição de retorno, melhorias nas condições de abrigo do animal no quintal da casa de dona Elizete -- com um recinto maior cercado por tela, para que o macaco fique solto -- assim como deva ser passada uma dieta adequada. Mas, com a licença dos ecologistas e defensores da fauna, summum jus, summa injuria. Neste caso, devolvam "Chica" à sua dona.
[uma semana depois deste artigo ser publicado, a Justiça determinou a devolução do macaco à dona Elizete, condicionando melhorias no abrigo do animal e na alimentação]
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Macaco Chico: caso do animal mantido 37 anos em cativeiro pode parar na Justiça com argumentos afetivos (http://faunanews.blogspot.com.br/2013/08/macaco-chico-caso-do-animal-mantido-37.html)
ResponderExcluir“A família que durante 37 anos cuidou de um macaco-prego em São Carlos (SP), retirado pela Justiça no último sábado (3), conseguiu um advogado nesta segunda-feira (5) para tentar trazer o animal de volta para casa. Após uma denúncia, o bicho foi levado para a Associação Protetora dos Animais (APA) de Assis (SP), que fica a 330 quilômetros de São Carlos. Exames veterinários feitos nesta tarde atestam que o macaco, até então conhecido como Chico, é, na verdade, fêmea. A dona do animal, Elizete Farias Carmona, de 71 anos, discorda. Dois abaixo-assinados na web que pedem a volta do macaco já tiveram adesão de 14.544 pessoas. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) da cidade vai apoiar a família.
(...) A presidente do Conselho de Meio Ambiente da OAB de São Carlos, Elizabeth Pepato, também procurou a família nesta segunda-feira para oferecer apoio. A entidade recebeu um e-mail do Cadastro Nacional dos Advogados solicitando à OAB de São Carlos que fizesse uma intervenção no caso e apurasse os fatos.” – texto da matéria “Família consegue advogado para tentar recuperar macaco-prego”, publicada em 5 de agosto de 2013 pelo portal G1
Chico, que foi rebatizado como Carla, foi apreendido em 3 de agosto de 2013 após permanecer sem autorização do órgão ambiental por 37 anos com Elizete Farias Carmona, de 71 anos, em São Carlos (SP). O animal foi levado para a ONG Associação Protetora de Animais Silvestres (APASS), em Assis (SP). O caso causou grande polêmica com gente defendendo a ação do Estado e gente considerando uma crueldade a retirada do macaco do local onde, alegam, estaria ambientado.
(continua no próximo comentário....)
(http://faunanews.blogspot.com.br/2013/08/macaco-chico-caso-do-animal-mantido-37.html)
ResponderExcluirContinuação do comentário anterior:
A história desse macaco-prego-amarelo ganha agora um novo capítulo, que deve se desenrolar nos tribunais com a alegação da família de estar defendendo o bem estar afetivo do animal.
‘“Estamos à disposição. A família pode ingressar com ação própria para que o macaco volte. Além do direito de ela estar com o animal, vem o caso afetivo. Então se ficar longe, o animal vai sofrer mais do que no convívio da família”, disse a presidente da Comissão.’ – texto do portal G1
Deve-se salientar que também há argumentos que contradizem o alegado bem estar do macaco. O presidente da ONG Aguinaldo Marinho de Godoy declarou para o portal G1 na matéria “Veterinários de Assis, SP, atestam que macaco ‘Chico’ é fêmea”, publicada em 5 de agosto de 2013:
“Ela foi mantida presa com uma corrente de cerca de um metro, que não é o espaço recomendado, ela disso criou sequelas como machucados no pescoço e atrofiamento dos pés”, completa Marinho.
Ainda de acordo com os integrantes da ONG, o animal destruiu a ‘coleira’ quando ela foi retirada. “O que demonstra que ela não gostava de ficar presa.”
Outra matéria do G1 ("Macaca 'Carla' terá acompanhamento nutricional para recuperar peso ideal"), publicada em 6 de agosto de 2013, ainda destaca:
'Carla’ foi recolhida da casa de Elizete Farias Carmona, de 71 anos, em São Carlos. A antiga dona enviou uma folha de papel para a ONG detalhando a alimentação que dava ao animal: cenoura, banana, pão, leite, farinha, arroz. Segundo o presidente da ONG, Aguinaldo Marinho de Godoy, ‘Carla’ terá duas semanas de supervisão nutricional. “Agora que o veterinário e o biólogo passaram o cardápio correto, inclusive com uma quantidade maior do que para os demais macacos. Nos próximos 15 dias, a cada três dias vamos fazer o acompanhamento nutricional fazendo a pesagem, já que hoje ela pesa 3,3 quilos e está três abaixo do peso ideal e também tem as pernas e o quadril atrofiados por causa da pouca movimentação”.'
Além do bem estar do animal, o caso deve ser analisado dentro do contexto do combate ao tráfico de animais silvestres. O mercado negro de fauna só existe porque tem gente que cria silvestre como pets e porque tem gente que compra os bichos. Será que a devolução do animal para a família não soará como um incentivo a tal hábito.
O poder público não investe em educação ambiental para conscientizar a população sobre os problemas causados pelo tráfico de fauna. Doenças são transmitidas para a população (mais de 180 zoonoses, como a raiva, já foram identificadas), animais sofrem, florestas perdem seus disseminadores de sementes, teias alimentares são alteradas e, se formos seguir com o raciocínio, é fato que a retirada dos bichos pode levar a extinções de espécies, com prejuízos ao equilíbrio dos ecossistemas e impactos climáticos e na produção de água. Tudo está integrado.
O poder público tem errado ao não encarar de frente o comércio ilegal de silvestres. Só fiscalização (que é deficiente e pouco chega às quadrilhas organizadas) não adianta. O Estado não possui uma política competente para gerir a fauna brasileira. Estimativa da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), de 2001, indica que cerca de 38 milhões de animais (sem contar peixes e invertebrados) são retirados da natureza todos os anos para abastecer o mercado negro.
O caso da macaca Carla, que por 37 anos foi Chico, está servindo para escancarar o problema.
Será que devemos tratar o caso com sentimentalismo?
Valeu, Dimas
ResponderExcluirDiscordamos no caso desse epísódio. Usei o macaco para falar sobre justiça