Mais que deplorável, uma vergonha, a reação dos médicos brasileiros à chegada de seus pares cubanos para atuar nos rincões miseráveis do Brasil, onde muita gente só sabe o que é um médico pela televisão. Com sorte, atualmente, há quem seja atendido por um médico uma vez por ano. Essa é a realidade drástica fora das grandes cidades do país e nos lugares mais distantes da costa. As vaias e os gritos de "escravos" no aeroporto são um triste retrato do corporativismo sem sentido -- que coloca sob holofotes apenas uma das várias fraturas expostas da saúde brasileira: a má distribuição de médicos pelo território nacional.
Para quem mora numa dessas regiões desassistidas, pouco importa a língua que os homens de branco falem. A presença deles pode significar a diferença entre viver ou morrer. Pode significar o combate a um leque de doenças, algumas muito perigosas, em que a prevenção [ou um tratamento cedo] evitaria óbitos, principalmente de crianças. O espanhol não é, digamos assim, um idioma de difícil compreensão, quando falado pausadamente. Em duas viagens a Alcântara, no Maranhão, em férias escolares [portanto faz tempo], conheci o filho de um pescador de camarões de quem acabei ficando chapa. Ele me contou certa vez que já recebera outro hóspede em sua casa e que ele falava um "português meio enrolado". Na conversa, descobri que era um uruguaio.
Ao ouvir os gritos de "escravos" no aeroporto, um cubano entendeu o que falavam, e reagiu: "Não sei porque diziam isso. Não vamos tirar seus postos de trabalho. Seremos escravos da saúde, dos pacientes doentes". Nas redes sociais, leia-se Facebook, o tema virou motivo de agressividade entre internautas. Uma jornalista gaúcha, que depois se arrependeu e se retratou, chegou a dizer que as recém-chegadas "médicas cubanas têm cara de empregada doméstica". Estava falando obviamente de médicas negras, preconceito e racismo em estado bruto. Pois é, as aparências enganam. Na ilha de Fidel -- com todos os erros e fracassos econômicos -- o analfabetismo foi praticamente zerado. O problema lá é de outra ordem: um barman de hotel em Varadero me revelou que era formado em engenharia naval, mas preferia servir drinques e petiscos porque ganhava mais. Não vale a pena revelar o quanto mais. É irrisório.
Há 20 anos estive em Cuba, e ouvi o dilema de uma jovem em Havana. Perguntei porque falava mal de Fidel, e ela me respondeu: "Não estou falando mal, sem ele eu seria uma empregada doméstica. Não teria feito faculdade. Mas quero comprar sapatos". À época, salvo engano, o planejamento estatal só previa a compra de um par, por ano, por pessoa. Nossas médicas bem-sucedidas vestem Prada e podem comprar quantos sapatos quiserem. Não querem comer poeira, depois de anos de formação. É um direito legítimo. Mas não tem sentido tentar impedir o direito à vida dos esquecidos, aqueles que só são lembrados em ano eleitoral.
O argumento de que não há infraestrutura nesses locais é de conhecimento geral. É assim há décadas. A corrupção, o desvio de dinheiro e o fato de a maioria dos municípios brasileiros não ser auto-sustentável [são dependentes de verbas federais] explicam grande parte dessa tragédia. Para quem nada tem, ser atendido por um médico é a salvação. É uma chance, ainda que precária. Nos idos dos anos 90, fui a trabalho para uma cidade no interior de Rondônia. Ali só havia um médico. Não havia equipamentos básicos, e ambulância só uma vez por semana, ou em caso de urgência, vinda de outra cidade próxima. A fila era grande, com gente de tudo o que é lugar nas redondezas. Ninguém se atreveu a falar mal daquele homem: "Ele é tudo o que temos, e atende a todos", disse uma mulher com o filho no colo.
É preciso dizer mais?
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