Há muito mais graça e verdade na mulher da esquerda do que na da foto à direita -- a mesma mulher com photoshop |
Mulher sem celulite, não é mulher. É modelo, e modelo não é mulher, é manequim, borracha pura, sem sal e graça. Nas últimas décadas, nem de borracha são. As modelos viraram mulheres de pele e osso, quase sem recheio e com fortes tendências suicidas -- porque atingem metas de peso e massa corporal graças a atos de anorexia e bulimia. Isso deixa ainda mais cristalina a minha opção. Celulite sim! É bom pra mim!, no ritmo dos Titãs. E saudável para elas. Viva a celulite, fora o photoshop. viva sem retoques, prática comum em revistas como a antiga Playboy, dedicada ao público masculino e que completou 40 anos em 2015 [e estava ameaçada de fechar, mas não fechou]. Suas páginas fizeram história ao mostrar muita mulher famosa nua ou seminua em seus ensaios de capa. Vendia como água, tinha anunciantes de produtos sofisticados e a cada mês gerava expectativa nas bancas.
Lembro-me, porém, que no final dos anos 1970, quando eu estava na flor da idade, aos 19 anos, nada mais chocante foi ver o que fizeram com a atriz Beth Faria, capa da revista quando já tinha perdido, claramente, o viço da juventude. Não havia photoshop, a turbinada geral era feita no braço mesmo. Sobre uma foto no paste-up, com várias folhas de seda, havia marcações: "Tira esse pêlo", "some com a pinta, apaga aquelas rugas, disfarça as estrias ali", "esssa baita celulite dá demissão por justa causa" e frases mais pesadas e jocosas sobre o que pessoal da Arte deveria fazer, usando de todos os recursos possíveis, com pincéis e tintas, para "endireitar" a moça. Cada folha de seda se referia a um ou mais pedidos de retoques, e tinha as assinaturas de quem pediu, de quem fez a "operação" e de quem conferiu. O resultado foi, evidente, uma outra Beth Faria, nua ou seminua, que faria qualquer um dizer "como ela está bem-conservada". Os caras eram artistas mesmo. Os programas de computador atuais apenas facilitaram esse trabalho, tornando-o mais rápido e menos exclusivo: agora qualquer criança, com o mínimo de habilidade e algum treino, faz um retoque numa foto em casa.
Às vezes me pergunto, porque tanto sofrimento com o inevitável. Claro, todo cuidado com a saúde é bom, e todo cuidado com a beleza é saudável, dentro de limites. Mas a dimensão da coisa só fui perceber quando uma amiga de longa data comentou, em tom de brincadeira. "Minha celulite, Minha Vida". Eu disse até que ela acabara de criar um bom slogan e nem precisava de verbas do PAC. Ela emendou: "Não é preciso mesmo de incentivos do governo, é só se atracar com chocolates, refrigerantes e hormônios e a gente entra no 'programa'". Uma outra amiga, também de outros e saudosos carnavais, apontou para outro ângulo do dilema."Você diz isso porque é homem, duvido!", revelando a pressão do padrão estético, que a todo momento exige tudo durinho e lisinho na mulher. O que na prática "enlouquece" qualquer moça. Basta ver os anúncios "salvadores" e as reportagens redentoras apoiadas em declarações médicas$$$ em profusão. Como se nota, o novo messianismo não mexe só com a alma. "10 mandamentos contra a celulite", "Dê um basta...", "Tratamento natural resolve a celulite" e por aí vai. Todos contra a "pele casca de laranja que atormenta as mulheres". Neste caso seria preciso, sim, de algum investimento, de um PDC [Plano de Desaceleração da Celulite]. Antes que me descasque e descarregue toda sua ira sobre mim, a expressão "pele casca de laranja" é usada pelos anunciantes de soluções mágicas.
Há quem vá dizer que gosto de mulher com celulite porque as mulheres [implicitamente mais jovens] que não têm essa "disfunção estética", palavras dos textos messiânicos, não me querem. Ok, sou um [des]respeitável senhor, que ultrapassou a barreira dos 50, mas aprecio mulher normal, com alguma celulite e -- outro tabu -- seios com caimento natural. É intolerável seios meia bola de futebol, ou meio capacete. Que pelo menos turbine com moderação, Não gosta da minha predileção, da minha calvície ou de minha leve barriga. Me esqueça. Se gosta, tire proveito, se puder. Há outros homens que compartilham essa mesma convicção. Não posso me queixar, há mulheres, muitas mesmo, que reagem assim: "Ai, que bom seria se todos os homens pensassem assim" [não, não sou e nem me sinto privilegiado]. Agora se você está me achando um chato, pare por aqui, porque sobre fraude a coisa vai ficar bem mais pesada a seguir.
História oficial
A arte de retocar fotos começou, porém, com objetivos muito mais sérios e claros, bem antes das revistas masculinas do século passado ficarem famosas ao transfomarem as mulheres em objeto de desejo. O livro "O Comissário Sumiu", de David King, mostra como a fotografia era retocada na Rússia de Josef Stalin (1878-1953). As pessoas que caíam em desgraça [que ele via como inimiga ou uma ameaça pessoal ou política] durante seu governo mão de ferro na antiga União Soviética, de 1920 até sua morte, simplesmente eram apagadas das fotos oficiais [além de serem presas e até mortas]. Claro que tratava-se de uma tentativa de falsificação da história, que felizmente não vingou. O livro revela vários casos -- até mesmo quando o "desaparecido" numa foto oficial é "ressuscitado" pelo ditador e volta a constar da mesma imagem. Não foi o caso de Nicolai Yezhov. Preso em 1939, foi fuzilado em 1940. Na fotografia abaixo à esquerda, por exemplo, aparecem Voroshilov, Molotov, Stalin e Yezhov caminhando à beira do canal Moscou-Volga, construído pelo trabalho forçado de presos do regime comunista, com um elevado número de mortes. Depois, Yezhov desaparece da mesma foto. Em 1953, morre Stalin, mas não stalinismo. Em 1956, Nikita Khrushchev, seu sucessor, disse que Yezhov era alcoólatra e viciado em drogas, e que "teve o que mereceu".
Stalin (acima) com Nicolai Yezhov à beira do canal do Volga; ao cair em desgraça, Yezhov some da foto oficial |
O estilo de Stalin governar está expresso em pelo menos duas frases do déspota genocida: "As ideias são mais poderosas do que as armas. Não deixaríamos nossos inimigos ter armas, por que deveríamos deixá-los ter ideias"; e "A morte é a solução para todos os problemas. Nenhum homem, nenhum problema".
Ah, em tempo: que nenhuma mulher tenha infeliz ideia de abraçar o pensamento de Stalin em relação à celulite: "Nenhum homem, nenhum problema". Não achei a menor graça, tá?
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Q bom seria,se todos os homens pensassem assim.
ResponderExcluirIazhhov mereceu, não ser apagado em fotos, como foram tantos outros. Mas o destino que teve foi o mesmo ao qual levou tantos milhares e milhares e milhares. Foi ele (e não o mais famoso Beria) o chefe do NKVD (depois KGB) na época dos Grandes Expurgos. Ari
ResponderExcluirMeu querido Ari. Não tem santo na foto, todos que estão com Stalin são assassinos como Stalin foi, mesmo que tenham sido presos e/ou mortos depois. Yezhov foi quem forneceu a mão-de-obra citada no texto sobre a construção do canal, feita com o trabalho forçado de presos que morreram aos milhares.
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