quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A GENTE ERA FELIZ! MILICO QUASE ESTRAGA TUDO

Cabo Frio: a ponte Feliciano Sodré, com vão histórico. foi concluída em 1926 e quase demolida pela ditadura militar 
                 

 Diante de pousada em Cabo Frio: minha irmã, papai, eu e a Veraneio
            Megaferiadão em 21 de abril de 1971, plena quarta-feira. Em qualquer feriado era sempre o mesmo ritual. Papai pegava a perua Chevrolet Veraneio azul calcinha e picava a mula rumo a Cabo Frio e Búzios. Em qualquer feriadão, eram 9 horas de estrada. Meu irmão mais velho ia conversando direto com o papai, para que não sentisse sono [o meu irmão, Sérgio como o pai, sempre foi boa prosa]. Primeiro, a gente enfrentava a via Dutra. Depois, como ainda não existia a ponte Rio-Niterói, era preciso contornar a baía de Guanabara pela Rio-Petrópolis até Magé. Brincávamos no caminho, "vai chover até Araruama, depois limpa". Batata, não sei que vento batia naquela região, mas a gente chegava sempre com a noite estrelada. Garantia de sol nos dias seguintes, muito sol aliás. Aquilo, sim, era o paraíso na Terra.
      
               Em Cabo Frio, havia as dunas perto da cidadezinha, e as praias de Peró e Conchas, vazias depois das salinas. Sem uma casa sequer à beira-mar. Almoço às 15h na casa do pescador na ponta da praia: mexilhão com arroz. Em Búzios, a Ferradura era mata até na areia. E a pequena João Fernandes linda linda e água cristalina. Mais a Prainha [ou João Fernandinha], onde minha outra irmã, Flavia, achou, afundada na areia, a chave do carro de um jovem casal de turistas já meio desesperado. Pela incrível sorte, sorte de criança, ela ganhou NCr$ 20 [cruzeiros novos]. "Papai, olha o que eu ganhei!!!" Meu pai rapidamente pediu que ela devolvesse o dinheiro. O que ela topou. Uma aulinha rápida de cidadania.

Conchas: praia onde nao havia nada nem casas nem muita gente

               Pousadas deliciosas e rústicas, chalés, um povo simples e generoso. Em Cabo Frio, lembro-me de dois episódios. Como não havia viva alma nem bar na praia, a gente levava comida e côco verde gelado pra praia do Peró. Não havia como abrir o cocô sem facão, Era um sábado e o açougueiro estava fechando. Ele, então, nos emprestou um facão de seu trabalho, dizendo: "Devolve na segunda". Dito e feito, pode? O outro episódio: um pipoqueiro que vendia cuscus de tapioca doce com côco, maravilhoso, brincava com o meu pai: "Seus filhos são todos paulistas", dizia. Sabe o motivo? "Paulista não pega o saco de pipoca por baixo. Sempre por cima, pra não deixar cair no chão uma pipoca sequer". Um a um pegávamos como ele falara e ele ria: "Está vendo, é fácil reconhecer paulista". O carrinho de pipoca do moço [naquela pracinha perto do canal e da ponte de uma mão só, que tinha sido construída havia quase 50 anos e levava a Búzios] era o mais bem cuidado, pintado de azul e branco. O final de tarde era sempre lá naquela pracinha, sempre o mesmo pipoqueiro. E voltávamos caminhando para a pousada, perto do canal.             
               
              À noite, de repente, um jantar diferente em Rio das Ostras, no "Le Bistrô" de um francês. Ali experimentei minha primeira batida de maracujá, aos 12 anos [uma novidade da época, com a "liberação" do papai, que abriu "exceção"]. E voltávamos para a pousada de Cabo Frio devagar, sem pressa, janelas abertas, brisa no rosto, cantando músicas em coro, com o papai ao volante da perua cantando também. Tempos inesquecíveis. Aquela Cabo Frio não existe mais, Rio das Ostras, acho que também não. Búzios, quem sabe, talvez tenha algum vestígio. O único risco que havia era a brisa constante: sem protetor solar, você podia fritar sem perceber e acabar no hospital.
             
       O dia em que a ponte quase foi derrubada


Título da reportagem sobre a ponte estreita sobre o canal de Itajuru


 "Diário de Notícias" traz nota sobre a ponte em 25 de março de 1973
        
       No início dos anos 1970, no auge da ditadura militar e do "milagre brasileiro", o ministro e coronel Mário Andreazza, dos Transportes, quase demoliu a Ponte Feliciano Sodré, que tinha só uma pista em Cabo Frio. Era preciso esperar o sinal abrir para atravessá-la de carro. Vindo da pracinha de Cabo Frio, à esquerda era o único caminho até Armação de Búzios [ou Búzios] e à direita a rota para as salinas e as praias igualmente virgens e limpas do Peró e Conchas. Para qualquer dos lados, a estrada era de terra, chão batido. [Poeeeeeira, levantou poeira!] A pedido do prefeito, o ministro prometeu uma nova ponte, mas por pouco não derrubou aquela obra antiga tombada pelo patrimônio histórico, concluída em 1926 e que impulsionou a extração de sal na região. Naquela época, Búzios era um "bairro" de Cabo Frio, O jornal "Diário de Notícias" anunciou, em 1973, a construção de uma subprefeitura em Búzios para "atender ao fluxo de progresso daquele distrito".
  
        Destruir a "pontinha" [como a gente chamava] teria sido um crime à história da cidade e à arquitetura [pelo tamanho do vão, inédito]. Seria como demolir a ponte pênsil em São Vicente. Hoje, aliás, a ponte [se não é] deveria ser usada só por pedestres e ciclistas, afinal Cabo Frio é praticamente plana, com vocação fortíssima para as ciclovias. Em 25 de março de 1973, uma reportagem do jornal "Diário de Notícias" dizia claramente que o ministro "autorizou estudos para a construção de uma nova ponte de acesso a Armação de Búzios que substituiria a existente sobre o canal de Cabo Frio". O prefeito da cidade, segundo o jornal, dizia que o Patrimônio Histórico Nacional desejava que a futura ponte fosse "uma réplica da atual", só que maior. O jornal informava também que uma série de reportagens sobre problemas da cidade na alta temporada havia mostrado "o quanto a ponte velha" era "prejudicial" ao crescimento do turismo.

        A ponte escapou por um triz. Uma outra foi feita ao lado. A nova ponte não é uma réplica da antiga e foi entregue em 1983. A ditadura militar acabou em 1985.

                          
Praia da Ferradura (Búzios):onde havia mata, hoje só há casas


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2 comentários:

  1. Adorei o seu comentário e as fotos George Alonso. Eu estive neste lugar em 1973. Foi as minhas melhores férias. Também sou escritora, e estou revisitando o passado à procura de dados para o próximo livro.
    Saudações
    MARIA MAIER

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  2. Bacana Maria, boa sorte no seu novo livro. Vc já publicou?

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