sexta-feira, 9 de setembro de 2016

DE MÃOS DADAS


         Ele caminhava pelos corredores de um shopping, ao lado do filho, rumo à praça de alimentação. E num gesto natural pegou a mão do garoto. E o menino segurou firme na trança de dedos. Um leve sorriso, uma troca de olhares. Há uma satisfação inexplicável, um certo de orgulho, no ato de dar as mãos. Este é meu pai, este é meu filho. Foi aí que ele pensou nela, de novo. Onde estarão suas mãos agora? Lembrou-se dos dedos daquela mulher tocando suavemente em seus braços. Nossa, aquilo era como uma luva macia de pelica enquanto ele dirigia o carro ou quando estavam sentados à mesa em algum restaurante. Um turbilhão de coisas veio-lhe à cabeça. Ai, que vontade de andar de mãos dadas com ela outra vez.

         Dar as mãos e caminhar juntos pode parecer banal, mas talvez seja o mais cristalino sinal de amor. Mais que o beijo, um prazer físico intenso, um frisson de olhos fechados que faz voar e sonhar. Diferente, dar as mãos e caminhar é uma quase imperceptível massagem nos dedos, causa frisson de olhos abertos e coloca os pés no chão [afinal, se sonhar é bom, viver cada dia e avançar é muito melhor]. Andar de mãos dadas é pisar nos astros distraído, como diz a letra da música mutante "Chão de Estrelas". Sim, também é um sinal de união [não de unidade, muito menos um desfile de posse].  Ele, imaginando a cena, e o garoto rumam com os dedos trançados, tranquilos, à praça de alimentação. Ai, que vontade de andar de mãos dadas com ela outra vez.

         Ele leu em algum lugar que estudos científicos feitos com o uso de ressonância magnética detectaram no cérebro uma maior redução do estresse quando se anda de mãos dadas com a pessoa amada. Onde está ela, então? Ele está chateado. Triste. Onde estão as mãos dela para aliviar tudo, repor a paz e a alegria incontida, acabar com essa angústia? Se andar de mãos dadas simboliza confiança, respeito e cumplicidade --o que sentem um pelo outro--, por que não dar as mãos e um passo atrás? A vida é curta, curtíssima, por que ser um exterminador do futuro, se a conta amorosa fecha no azul? Por que acreditar, como um profeta do apocalipse, no catastrófico "ah, não vai dar certo!", e decretar antecipadamente, com a (im)precisão dos horóscopos, o fim de um amor possível? Enquanto perguntava a si mesmo, ele caminhava com o filho, mãos dadas, rumo à praça de alimentação. Ai, que vontade de andar de mãos dadas com ela outra vez.

         Vagamente, muito vagamente, mas ele ainda sente o encaixe das palmas. Durante passeios de mãos dadas quantas vezes construíram castelos iluminados em ruas escuras, viajaram no tempo a mil quilômetros por hora em calçadões de uma avenida engarrafada e entupida de gente, ou cavalgaram nos céus ao colocar apenas os pés na areia, ou nadaram em rios transparentes quando as dificuldades pareciam deixar tudo turvo, quantas vezes entraram em temidas cavernas e acharam luz no fim do túnel, quantas vezes de mãos dadas saíram de becos sem saída, quantas vezes tocaram trombetas para afugentar a inveja alheia, ou beberam e cantaram sozinhos, com amigos ou parentes músicas para festejar "em boa companhia". Ele e o filho ainda caminham, mas estão bem perto da praça da alimentação. De mãos dadas, por quantas vitrines insensíveis eles passaram!? Ai, que vontade de andar de mãos dadas com ela outra vez.

       Há quanto tempo ela não lhe dá as mãos? Imagina. O convite é simples: vamos passear de mãos dadas? Mesmo que seja o último passeio, ou penúltimo, por que não antepenúltimo, ou ainda o primeiro de um novo tempo. Eles chegaram enfim à praça da alimentação, de mãos dadas. Ai, que vontade de andar de mãos dadas com ela outra vez.
   
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quinta-feira, 8 de setembro de 2016

A SRA. GÔNDOLA



               A geladeira está fazendo eco, de tão vazia. Conto quatro tomates, meia dúzia de latas de cerveja, uma ameixa... ah, um pote de açaí "decora" o freezer, acompanhado por uma garrafa de vódca. Não vejo frutas no cesto, fora de geladeira, claro. Torna-se imperioso admitir que a situação é grave. Tenho que ir ao supermercado, com quem mantenho uma relação de amor e ódio. Atacando as gôndolas e enchendo o carrinho, há até uma sensação de felicidade, que se esvai logo quando penso na operação toda... Entra na megafila, espera espera espera, tira tudo do carrinho no caixa. Ensaca tudo e devolve pro carrinho, tira do carrinho e coloca no porta-malas do carro, tira do porta-malas pra pegar o elevador, segura a porta do elevador com um dos sacos para tirar as compras no 14º andar. Libera o elevador. Bota tudo no chão pra abrir a porta de casa, carrega tudo pra cozinha e começa a tarefa de tirar um a um os produtos... ih, esqueci a porta do apê aberta. Fecho a porta e volto a guardar cada coisa em seu lugar... Perdeu o fôlego? Imagine eu! [quem diria, quando criança ficava feliz em ir ao super com meu pai]

              Pois, hoje é sábado,  e tenho que sair. Antes fosse para encontrar uma linda mulher, mas não, ando solitário, vou ver a Sra. Gôndola e passear entre outras tão parecidas com ela. Que chatice, um passeio de "voyeur". Ir às compras é reviver hoje o mito de Sísifo: em vez da pedra empurrada morro acima e que depois rolava morro abaixo, agora empurramos carrinhos de supermercado para encher a geladeira vazia que, para não fazer "wall wall wall" ao ser aberta, é preciso ser sempre reabastecida. Com uma diferença: além do esforço físico aborrecido, há um custo adicional mensurável no caixa, pago em papel-moeda ou com cartões e que pode dar uma tremenda dor de cabeça.

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domingo, 4 de setembro de 2016

O JANTAR E A NÉVOA



          Boa noite, onde vamos colocar a conversa em dia, meu caro? Ela sugeriu um restaurante a quatro quadras de sua casa. Foi assim, depois desse convite para jantar, que ele, de namoro recém-desfeito, foi rever uma velha amiga, que morara no exterior por três anos, mas voltara ao país havia uma semana. Seria um modo de unir o útil ao agradável. Esquecer um pouco do passado, se distrair, mudar o foco de seus pensamentos. Logo ao encontrá-la, porém, ele sentiu algo estranho, a velha amiga lembrou por uma fração de segundo um pouco da ex, mas ele tratou de disfarçar essa sensação. Vestida toda de branco e com transparências, elegante, ela exibia cabelos finos com mechas loiras, e estava enxuta de caminhadas quase diárias e alguma academia aos 46 anos, e mãe de uma filha de 18. Já à mesa, o papo sobre o momento de suas vidas só era interrompido por garfadas em camarões crocantes e levemente picantes com risoto úmido no ponto certo, em ambiente à meia-luz, com velas. Parecia que ia dar certo.

           Ele falava mais do que ela, que perguntava perguntava... e ele dizia, pausadamente, sobre os novos sonhos e projetos profissionais. Ele disparara a falar não com medo do silêncio, de dar "um branco", a sensação de vazio ou de falta de assunto que por vezes acontece hoje, principalmente nos "encontros às cegas", comuns no mundo virtual. Ali, eles já se conheciam, não havia motivo para qualquer desajuste ou saia-justa. Não havia espaço para o costumeiro o "vi, não gostei, dispensei" ou ainda o "fast-food" das aventuras nas redes de relacionamento. Ele não parava de falar. E a amiga mostrava-se mais interessada numa solução de continuidade do que o próprio "tagarela". Ela escutava com atenção suas palavras, seus sentimentos. Mas, desde o início, aquele estranhamento -- o flash da ex-namorada -- havia dado tom no jantar.
   
         De repente, assim do nada, o desinteresse tomou conta do ar. Rapidamente, então, ele pediu ao garçom para fechar a conta. Ela tentou esboçar uma reação, retomando a conversa, mas já era tarde. Para ele, tudo o que dissesse só pioraria as coisas. Qualquer palavra "errada" acentuaria as diferenças. Não era a primeira vez que isso ocorria com aquele homem. Ele sabia, seria como tivesse vergonha de estar ali. De uma hora para outra, ele olhou para o outro lado da mesa e já não havia ninguém. Só viu o vestido branco da amiga ser aos poucos engolfado por uma névoa igualmente branca, até ela simplesmente desaparecer. [No passado, quando isso ocorria, em vez de uma bruma surgir, um castelo de areia se esfarelava diante dele e tudo perdia o sentido]. Foi aí, pelo olhar distante dele, que a amiga [ou ex-amiga?] sentiu que a noite estava perdida. Ele lamentou consigo mesmo e pensou: "Não estou pronto, não estou curado, ou não é ela". Ou as três coisas juntas.

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sexta-feira, 2 de setembro de 2016

AQUELE ABRAÇO


 
              Definitivamente, não há nada igual a um abraço. O abraço apertado de um filho provoca sensações únicas, além da certeza de que um amor inigualável e incondicional está ali. Nada como o abraço fraterno de um pai, de uma mãe, de um irmão. Abraçar é como lavar a alma. Abraçar é receber sem medo, de peito aberto. Abraçar é sentir a presença, é produzir mais calor. Abraçar é aceitar, é um reconhecimento. Mas há outros tipos de abraços, de amizade, solidariedade, união. Muitas vezes é um sinal de confiança ou de agradecimento. Há momentos também em que abraçar é um jeito de explodir... de alegria. Quantas vezes abracei estranhos, homens e mulheres, em um estádio na euforia de um gol, no instante de partilhar a vitória do que quer que seja. Também é uma emoção única. Existe ainda aquele abraço de despedida, às vezes mais distante [com ou sem lágrimas] e cheio de formalidades: esse é como dançar juntinho sem se tocar, como andar na rua sem dar as mãos.
              Mas ele anda mesmo é sentindo falta "daquele" abraço. Não é qualquer abraço: é aquele apertado, apaixonado, esparramado na cama ou de pé contra a parede -- que ela lhe dava e ele se derretia. Será que ela já esqueceu o jeito de abraçá-lo? Ela ainda se lembra do primeiro abraço, ambos um pouco acanhados antes do primeiro beijo? Ele sente saudades daqueles dias na Serra da Mantiqueira. "Espere aí, me abrace de novo, sem medo, com força!", sonha. Era como se o corpo dele fosse uma peça inteira de "lego" do dela: macho-fêmea. Onde estará ela agora? Será que ela ainda pensa nele? [ele sabe que não, seja pelo que for][ele sabe que sim, mas de modo diferente]. Será que, como ele, anda abraçando travesseiros para aliviar a sua ausência? Onde foi que se perderam? Ah! Que difícil tem sido a tentativa de apagá-la da memória: um pouquinho que fosse, já seria um alívio para esse sofrimento. Ah! Que vontade ele ainda tem de dar um longo abraço silencioso, aquele sem palavras. E deixar que o laço dos braços e toque dos umbigos falem por si. Simplesmente um abraço, e pronto. E ver o que acontece. Quem sabe a magia volta, imagina.
            Bem que ele queria que esse abraço redentor fosse à beira-mar. "Nós nunca fomos à praia juntos", diz em voz alta para si mesmo. Ficou essa lacuna. E ele adora praia. Será que algum dia ainda será possível? "Será que nunca veremos juntos o horizonte, da areia?", continua. Ele sabe que não dá mais tempo. Nem se um dia dará. Ela se foi, e mandou "aquele abraço" [não o sonhado por ele], como se estivesse partindo para um auto-exílio, cumprindo seu suposto destino. Ele ficou, e só pôde dizer... boa viagem!

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O VIL METAL


            As moedas são frias, pequenas, de baixo valor unitário, mas poderosas -- como um espelho côncavo que concentra a luz e revela com clareza pendores da alma humana, alguns deles inconfessáveis. As moedas são como um falso vulcão que jorra as lavas da realidade sobre as pessoas. As moedas são cruéis: elas têm a capacidade de humilhar, de jogar na sarjeta a autoestima de quem está sem um tostão no bolso ou apenas faltando uma pratinha para pegar a condução. Você já pediu uma moedinha na rua? Se tiver coragem, peça e veja o que acontece. Conte quantos "nãos" irá ouvir, quantos olhares estranhos irão feri-lo. Se for jovem e aparentemente saudável, então, não estranhe um "sai pra lá, vagabundo!". Se for idoso ou maltrapilho, enfim...

            Bem cedo, na adolescência, por volta dos 14 anos de idade, senti na própria pele essa terrível sensação de "inexistência", ao voltar de um show de música no centro da cidade. No ponto do ônibus, percebi a falta de 30 centavos para completar a passagem. Demorei um bom tempo para tomar a decisão de apelar a alguém. Não por orgulho, mas justamente por medo das reações. Sim, é difícil, "vergonhoso", se aproximar para pedir uma  "esmola" [putz, por que comprei aquele saco de pipoca?]. Então, vencido o "dilema do vexame", eu me dirigi a um senhor bem vestido, e dei-lhe uma ligeira explicação sobre minha necessidade. Ele me olhou de alto a baixo, não pareceu acreditar na minha história e sumariamente me disse: "Não tenho!". Voltei cabisbaixo para a mureta. Mas percebi que ele me observava à distância, enquanto eu revirava de novo os bolsos da calça. Falava baixinho comigo mesmo, resmungava, reclamava com os deuses e alguns minutos se passaram. Eu já calculava quanto tempo levaria para chegar em casa a pé quando, de repente, o homem apareceu diante de mim com as moedas que faltavam. Agradeci até a última geração do sujeito, saí rindo e pulei dentro de um ônibus. 

            Outro dia, uma amiga contou, pela internet, um episódio que testemunhou na fila do bilhete do metrô. Uma moça deixava qualquer pessoa passar à sua frente, enquanto caçava moedas na bolsa. O tempo passava e ela permanecia ali fuçando. Então, ela se aproximou e perguntou se precisava de dinheiro para inteirar a tarifa. Envergonhada, ela disse: 20 centavos. Recebeu uma moeda de 25 e, com os olhos molhados, agradeceu enquanto tentava devolver os 5 centavos "de troco". Cena terrível. 

           Embora incomum, as moedas podem ter o lado caloroso. Por exemplo, um incidente dentro de uma padaria mostrou as duas faces de uma mesma moeda: levando um porta-níquel para facilitar o troco, uma amiga tomou um esbarrão na fila do pão. Sequer ouviu um pedido de desculpas e, pior, viu dezenas de moedas se espalharem pelo chão. Enquanto a moça que causou o estrago seguia seu trajeto indiferente [negando o ditado que diz que a boa educação é moeda de ouro em qualquer lugar], um atendente saiu ligeiro detrás do balcão e, ajoelhado, ajudou minha amiga a recolhê-las: "Não se pode desperdiçar. Minha mãe juntava todas em um pratinho e sempre que a gente estava em apuros tinha o pratinho em cima da geladeira pra nos salvar", revelou o gentil funcionário. 

         Dependendo do uso, as moedas podem ainda significar algo mais pesado no dia-a-dia: quem não se lembra da chuva de moedas que caiu sobre os jogadores da seleção peruana de futebol ao chegarem no aeroporto de Lima, após a estranha goleada sofrida contra a Argentina na Copa do Mundo de 1978? A acusação é de que o jogo tinha sido vendido -- o que rende até hoje discussões. Eu não tenho a menor dúvida de que a ditadura militar argentina precisava daquele "circo".

        Já a palavra "moeda", do latim moneta, deusa da mitologia romana, também ganha novos sentidos quando deixa de ser substantivo e passa a ser utilizada como adjetivo. A expressão "vou pagar na mesma moeda" é dita geralmente´por quem é bem recebido em determinado lugar e espera ser visitado por seu bom anfitrião em breve -- quando então lhe será dado tratamento semelhante ou melhor. Alguém [não me recordo quem, neste momento] já afirmou que o tempo é a moeda da vida, a única que nós temos e que só nós devemos determinar como ela será gasta. Ou seja, fique atento para não permitir que outras pessoas a gastem por você. Curiosamente, a palavra moeda [o vil metal] já foi usada na literatura para dar significado a sentimentos: "O amor é a única paixão que se paga com uma moeda que ela mesma fabrica"', segundo Stendhal, famoso escritor francês do século 19.

        Eu ainda acho que o escritor espanhol Francisco de Quevedo acertou ao comparar palavras a moedas: "Uma pode valer por muitas e muitas não valer por uma!"

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quinta-feira, 1 de setembro de 2016

O MOTORISTA E O ESTUDANTE

   
     Manhã fria de inverno, daquelas que sai "fumacinha" da boca. Era bem cedo, por volta  das 7h, e ele estava a caminho da faculdade de sociologia [sim, sonhou de "sleeping bag", diria quem o visse naqueles tempos cabeludo e contestador em plena ditadura militar]. Descera do ônibus no Vale do Anhangabaú rumo à escola e, como sempre, parou na mesma banca para ler as chamadas dos jornais pendurados, abertos como num varal para atrair leitores. Naquele dia, chamava-lhe a atenção um diário popular que, em letras garrafais, trazia de manchete um crime na cidade. Mais um entre tantos tão iguais, que ele, já acostumado, nem dava bola. Mas, de repente, estancou perplexo.

     Meses antes, caminhando pelo mesmo Vale, mas na volta para casa, em vez de estancar, havia acelerado o passo ao ouvir assobios -- daqueles que as mulheres não suportam [ou algumas gostam, sabe-se lá, tem gosto para tudo] -- seguido de "ei, psiu, psiu, psiu, você aí!". Os assobios e a abordagem o deixaram tão constrangido como uma mulher que ouve "gostooosa!" depois de um "fiuu fiuuuuu!" Naquele tempo, meados dos anos 1970, era comum essa atitude, grosseira, vinda principalmente dos canteiros de obras. São Paulo explodia em prédios e não faltavam canteiros cheios de operários trabalhando. Havia quem dissesse até que algumas mulheres gostavam de passar perto de edifícios em construção para aumentar a auto-estima [ele achava, isto sim, que era mais para uma piada de mau gosto]. Seguiu sua marcha adiante sem olhar para trás, fingindo que não era com ele. Afinal, se virasse ia ter que brigar, discutir, imaginava. Adolescente, estava muito desconfortável, quando alguém gritou bem alto o seu nome. Aí parou...

      Olhou para trás e viu um rosto conhecido rindo, gargalhando. Começou a rir também, aliviado. Sim, era Francisco, simpático motorista nordestino que havia trabalhado na sua casa, levando a mãe do rapaz para cima e para baixo. Naquele tempo, a profissão de motorista particular era comum na cidade, principalmente nos bairros de classe média e nas famílias com muitos filhos. Alguns eram contratados por empresas e cedidos às famílias de seus diretores. Francisco começou a lembrar, saudoso, daqueles dias. Fez perguntas sobre a vida do rapaz, de seus irmãos e da "patroa" etc etc. Ele admirava a mãe do rapaz, principalmente depois que teve a carta de motorista apreendida e a viu enfrentar um guarda de trânsito. Francisco discutira feio com o policial, após estacionar o carro perto de uma padaria. O guarda reteve o documento, por desacato. Irritada com o impasse, a "patroa" sentou-se ao volante e disse, decidida: "Senta aí, Francisco, e vamos embora!" O guarda reagiu e exigiu a sua carteira de habilitação. A "patroa" só mostrava o documento à distância e cobrava a devolução da licença de Francisco, que sorria por dentro. Nenhum dos dois lembrou com detalhes como se deu o desfecho mas, ânimos esfriados, o guarda devolveu-lhe a carta, não sem, claro, aplicar-lhe a multa.

       Francisco agora estava "na praça" havia três anos, dirigindo um táxi de frota. E a vida estava bem mais difícil, trabalhando dobrado, de dia e de noite, para pagar a empresa dona do veículo e ganhar o pão. Perguntado se não tinha de medo de assalto, brincou: "Tenho uma peixeira no carro". Havia se separado da mulher, que não suportara mais seus pileques [quantas vezes, a mãe do rapaz, mandou-o de volta para casa logo de manhã, quando aparecia para trabalhar já meio cambaleando, meio falando mole]. Francisco era atencioso, dirigia bem, divertido e respeitoso, mas era alcoólatra. Naquele encontro inesperado, porém, contou-lhe que depois do divórcio não bebera mais. Foi uma conversa rápida, não mais que uns cinco minutos, mas o tempo suficiente para rirem um pouco da vida e desejar mútua boa sorte. Eram duas da tarde e o rapaz voltou feliz para casa com a novidade: Francisco virara taxista.

      Naquela manhã cinzenta, porém, alguns meses após aquele reencontro, a cada passo que o jovem dava em direção à banca a foto crescia. O bigode, os traços... Ele o reconheceu. E gelou, um arrepio percorreu sua espinha ao ver o nome de Francisco no texto da manchete principal do jornal que dizia: "Taxista morto a tiros por assaltantes". Pavio curto, Francisco reagira ao assalto e dois ladrões o mataram para levar uns trocados na madrugada. O estudante tremeu vendo a foto 3x4, daquelas de carteira de identidade, impressa do tamanho de um pôster na capa daquele diário. Uma tristeza aguda tomou conta do estudante. Francisco no papel e ele ali paralisado, ouvindo ao longe o barulho das buzinas e vendo tão perto pedestres seguindo seu rumo, indiferentes, ao passar pela banca.

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terça-feira, 30 de agosto de 2016

PROCURO A SUA VOZ


        Nunca imaginei que um dia estaria procurando a sua voz. Há seis meses você não fala comigo. E, o pior, confesso, eu já me esqueci do som dela. E isso é algo que me tortura. Como em tão pouco tempo não consigo lembrar-me mais dela? Tento buscá-la através de fatos importantes de nossas vidas, mas nem assim resgato o som de sua voz. Recordo-me de frases completas, de pensamentos, mas não do som, nem o tom. Se tiver me ouvindo [eu sei que está], vou revelar, então, um segredo meio antigo: certa vez, mantive durante alguns meses uma gravação deixada por você na caixa-postal do meu celular, para poder matar a saudade quando quisesse. Mas um gaiato levou meu celular e com ele a sua voz. Hoje, após dias e dias a fio sem ouvi-la, penso como gostaria de escutá-la mais uma vez, mesmo que por apenas segundos, pelo menos um aceno de amor: "Oi, como você está, filho?", seguido de um beijo carinhoso no rosto, ou na testa. Como seria confortante.

       Quantas coisas boas você me disse, quantos pitos na infância, quantos toques na adolescência ["acho que sua vida anda um pouco desorganizada", foi o bilhete sutil que deixou na cabeceira da cama, quando eu vivia indo a festas e dormindo tarde todos os dias] e quantos conselhos na maturidade. Quantas risadas gostosas nós demos [lembra-se quando, durante uma viagem de carro a Búzios, você me acordou, à noite, em Itaboraí, para mostrar a antena parabólica gigante, toda branca, que fazia transmissões via satélite, uma novidade no início dos anos 1970? Você apontava pra antena de um lado, eu olhava para outro e dizia "estou vendo, estou vendo, que linda", para gargalhada geral, sua e de meus irmãos? Você lembra da chicotada que deu em meu rosto, sem querer, tentando acelerar o passo de um pangaré que puxava a charrete em Cambuquira? Eu chorei e você riu, meio sem graça, enquanto pedia desculpas. Hoje, dou risada sozinho desses episódios. Consigo visualizar seu sorriso mas, é terrível, não lembro mais de sua voz. Olha, moramos tanto tempo longe um do outro depois que cresci, você mudou-se para outra cidade, coisas da vida, e eu fui buscar meus sonhos, cometer meus erros e tentar encontrar o meu lugar no mundo.

       Agora, vendo-o deitado nesse leito de hospital há meses, abrindo os olhos ao chamá-lo, mas sem dizer uma palavra, qualquer que fosse, fico imaginando-o como um pássaro preso na gaiola, sozinho, triste e sem cantar. Eu sei que, rigoroso como é, não diria, mas eu adoraria que [para demonstrar sua irritação com o estado das coisas] você gritasse um palavrão. Que tal um puta que pariu!!!!!? Ou dar um basta com um caralho! Chega! Às favas com o que dizem os médicos... Lá no começo dessa tragédia, eu o vi se mexer como quem quisesse dizer algo, mas parece ter se cansado, selado dentro de si mesmo, frustrado com a condição de incomunicabilidade.Talvez eu esteja vendo demais, talvez porque o tombo que o imobilizou e o emudeceu também tenha me aberto os olhos e me roubado as palavras. O que dizer? Contar o meu dia, contar histórias, ligar a TV e assim encobrir esse silêncio tão doído. Perdão pai, se não estou te entendendo! A vontade é de gritar... mesmo que ninguém me escute, mesmo que eu pareça um louco.

      A vida, muitas vezes, vai emudecendo as pessoas. Tirando-lhes a vontade até de falar. Uma tristeza, um desapontamento, uma desatenção, um desenlace amoroso que não se espera... Às vezes o sentimento é de que a vida é uma misteriosa caixa que, aberta por um desavisado, espalhou pelo mundo todo o tipo de mal e desgraça. E pior, após o susto, fechada rapidamente, aprisionou logo seu único bem: a esperança. Não me entenda mal. Não desisti, mas a cada dia que passa sem que você diga uma única palavra, penso, quem me dera ter poderes para tirá-lo dessa clausura: o seu silêncio me silencia, é morte em vida.

 Que saudade de sua voz, pai!


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domingo, 28 de agosto de 2016

AMOR, ESTRANHO AMOR


Não se sabe quando, mas algum dia depois de uma satisfação ligeira vem o gosto azedo e corrosivo do arrependimento, da sensação de incompletude que a coisa passageira parece dar ao desavisado. Quantas mentiras foram ditas, quantas falsos juramentos foram feitos. Quantas palavras ao vento. Calma, não se aborreça. Não se interesse por isso. Afinal. a quem quis enganar? Só enganou a si mesma. Apressada, fez a troca dominada pelo impulso, e a noitada não deu em nada. Não foi nada daquilo, bateu na porta errada. E, se não foi desta vez, quando será o novo descarte? De repente, você está diante de perguntas mais pesadas sobre o sentido daquilo tudo. E o vazio já terá voltado sorrateiramente para dentro de casa, outra vez. Qual é afinal a direção certa, sem escalas, da felicidade e do fim da monotonia? Quem sabe o caminho das pedras? Ou só há pedras no caminho? E atiramos pedras para todos os lados e -- só para tirá-las do nosso sendeiro -- é aquele selvagem salve-se quem puder?

Aquele rapaz já havia sido preterido. Quem nunca foi? Ele lembra agora o que ouvira de uma ex-namorada adolescente que reencontrara numa padaria já mulher: "Não sabia que havia te magoado tanto!", disparou ela. Foram três longos anos sem receber dele um pio, um sinalzinho de vida. Ela, então, pediu desculpas, naquele reencontro por acaso com aquele homem [que a perdoara, mas para sobreviver precisara sumir para estancar o sofrimento]. Fora uma decisão dele, difícil de seguir à risca. Aos olhos dela, naquele momento, então, ele lhe parecia ainda mais bonito do que no passado, diferente. Como não notei isso antes?, pensou ela: ali percebera aquilo que até havia se dado conta antes, mas fingira não entender, repetindo à náusea a lenga-lenga de sempre "eram momentos diferentes". [Que gosto temos pelo auto-engano, não é?] Que ele, sim, a amara como nenhum outro, que desperdiçara uma chance. Por que é sempre assim? A gente só se dá conta depois? [Mas aquele homem ainda via beleza naquela mulher, claro que ela não era mais a mesma, mas ainda sentia atração por sua magreza sinuosa, seu olhar esverdeado e aquela boca... Claro eram tantas e boas lembranças, até mesmo do dia em deixaram uma festa e meio embriagados foram expulsos de uma delegacia, "saiam daqui!", onde pediam "queremos nos casar, o delegado está?"]

De lá para cá, quantas promessas não foram cumpridas. Muitas, poucas, grandes, pequenas? Tanto faz, estava feito. Novos momentos sublimes podiam vir? Sim, e vieram, juntos até o dia em que um câncer fulminante a matou em menos de três meses. Ele chorou muito. ela havia sido o seu grande amor da juventude. A segunda chance fora boa, mas curta. A vida é tão simples. Ele queria mais... Morreu do coração, dormindo, dois meses depois dela. Deixaram filhos, mas de outros casamentos.

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TÃO PERTO, TÃO LONGE


Ele sente a sua presença. Apesar do silêncio, ele sabe que ela está por perto. Sinal de que ainda está conectado, de coração e mente. Já ela... tão perto e tão longe. Seu bobo, ainda esperava uma visita surpresa? Não, como ele não sabia o que a movia tão distante de sua própria casa numa noite de inverno? Mesmo que seja pura imaginação ou fantasia ruim, não importa, esqueceu-se do que sugerira, com uma frase solta, com a separação inexplicada? Perto, mas não mais com ele. Que lamenta. De que isso adianta? Deixa o tempo passar, dizem "que tudo passa". Passa? E a ferida lá aberta. Quem sabe o tempo não irá amenizá-la -- isso acontece com poucos, é verdade, mas ocorre [há quem perdoe, mas não esqueça jamais!]. E, por que não?, há também quem a esqueça! No teste de múltipla escolha da vida, as três respostas são possíveis e estão certas. Deixe, portanto, de pensar onde estará, nem no que estará fazendo. Esfria-te neste momento, o coração não aguenta, assuma que perdeu. Chega! Uma hora ele, o músculo da vida, volta a esquentar e, nunca se sabe, o que era passado vira futuro de novo, e o que era futuro dela se transforma em pretérito imperfeito.

De nada adianta ter raiva. Fazer figa, torcer contra. Encher a cara. Chorar no bar com os amigos e as amigas, reclamar com o garçom do boteco predileto. Perambular pela noite com um animal faminto. Não há crianças na pista de dança, ainda mais com essa idade e a essa hora da noite. Quando alguém faz muita economia com as palavras já era, o outro já virou miragem, mesmo quando trocado por outra miragem pior, às vezes muito pior. Não importa a circunstância, se já estava engatilhada ou não. Em algum momento houve outras tentações, mesmo que recheadas de ilusionismo e falsas promessas. "Quando alguém diz que torce pela sua felicidade" é como aquele que afirma "a gente vai se falando": é melhor pôr a roupa de domingo, mudar de assunto ou ir dormir. Não rola, muito menos deita. Que pena? Que pena nada! Não vale a pena...  Ah, não tem sono? Trate de tomar um vinho, relaxar e rir. Agora não haverá mais cobranças "demasiadas". [E você até gostava de algumas, era sinal de que "o gostar" ainda estava ali]. Às vezes, quando não há compromisso, tudo fica mais fácil, até seu olhar vai mudar diante dela. Com todo o respeito, é claro. E o dela também. Sem grandes sonhos, mas também sem pesadelos. Quem sabe, até boa diversão seja possível...

Sozinho? Ok, pense assim, essa prestação não será paga mais em 12 meses, com juras [de amor]. Sem cobrança, a dívida acabou. Foi quitada ou suspensa antes do prazo. Claro, ela saberá na hora certa como identificar quem é quem diante da balança. E aquelas fotos todas espalhadas por vários arquivos do computador? Abra uma pasta única, jogue todas lá dentro. Só não as apague, seja porque você não desapega nunca, ou seja porque é você é daqueles que pensa, "nunca se sabe, até os mais experientes reabrem crediários antigos". Nunca se sabe.

De repente, você acorda assustado no meio da madrugada, um bocado suado, quase cai da cama e pensa... Putz, então tudo isso não passou de pensamentos vãos, horríveis? Foi mais uma "turbulência noturna"? Que bom! Vire de lado, ajeite a cabeça no travesseiro e volte a dormir, agora mais leve, porque amanhã está previsto um domingo de sol e calor!  E nem tudo está perdido.

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quinta-feira, 25 de agosto de 2016

KIKOS MARINHOS E POKEMONS


             Cada época parece ter a "loucura virtual" coletiva que merece. No início dos anos 1980 surgiram, de repente, os "kikos marinhos”. Estava na faculdade de comunicação e só se falava desses seres, de suposta origem pré-histórica, que faziam sexo o tempo todo dentro de um saco plástico cheio de água salgada. Todo mundo dizia que já tinha visto. Inclusive, eu. Nunca vi um kiko, mas vendeu como água. Foi uma febre, os tais kikos eram comprados nas bancas de jornais. O kit era composto por dois envelopes pequenos, parecidos com os pacotinhos de gelatina. Um com ovos desidratados do atlético animalzinho marinho [chamado também de humanóide] e outro com comida ideal para alimentá-lo. Foi um caso típico de 171, estelionato puro. Naquele tempo, ainda não havia pelo menos no Brasil [o caso Kikos foi um fenômeno internacional] o Código de Defesa do Consumidor. E muita gente levava para casa gato por lebre e ficava por isso mesmo. Depois de adquiridos os saquinhos, misturava-se o pozinho do envelope com os ovos dos bichinhos num copo com água. Durante dias, ou mesmo semanas, os que acreditavam no conto ficavam olhando aquela água parada à espera dos humanóides rabudos surgirem e começarem a brincar de reprodução -- fazendo as "acrobacias" prometidas. Na verdade, nada acontecia e a água apodrecia e era jogada fora pelos pais, inconformados. Houve gente que levou um saquinho com os supostos bichinhos na faculdade. "Você não está vendo, mas eles estão aí", diziam eles, tentando convencer colegas. Não me convenceram. Como eu, muita gente fez de conta que sim -- talvez só para manter-se na onda ou para fazer chacota. "Claro, estão ali, olha lá, dando cambalhotas". 

      Foi como no conto infantil "A Roupa Nova do Rei", que zomba da vaidade humana -- quando dois malandros chegaram a um reino e enganaram a todos dizendo que fabricavam um tecido de ouro. Ninguém via o tecido. Mas diante do rei pelado, seus assessores receosos em desagradar a majestade, diziam que estava lindo e reluzente, até que alguém [um garoto considerado honesto pelo povo] ousou gritar "o rei está nu!" durante o desfile público de apresentação da vestimenta e a farsa foi desmascarada, para o vexame do imperador. Nessa época, no entanto, os "kikos marinhos" inspiraram minha imaginação em outro sentido. Lembro-me que fiz uma adaptação: passei a usar a expressão "kikos terrestres" para denominar um episódio ocorrido com a namorada da época. Aos 18 anos -- no auge da adolescência e das descobertas desse  período -- passamos quatro dias trancados num quarto, na cama, num feriado prolongado frio e chuvoso da Independência do Brasil. Mal saíamos para comer ou mesmo tomar banho.

     Hoje temos os “pokemons go".  Bem menos divertidos que os "kikos marinhos", na minha opinião. Só não é estelionato porque eles são assumidamente virtuais, mas tem gente ganhando uma fortuna com essa brincadeira sem graça, que leva pessoas a parecerem zumbis perambulando nas ruas com seus telefones celulares. 

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DO QUE SE LEMBRA?


      É desses gestos que ele se lembra. Do cheiro dos cabelos enquanto repousa sua cabeça no ombro dele após uma delicada sequência de beijos sequinhos -- ou mesmo só por sono. É de sua mão percorrendo o contorno da face com suavidade, como quem identifica e faz a "colheita de rosto", antes da entrega. É daquele abraço apertado sem muita explicação ou justificativa ao revê-lo. Aquele olhar ressabiado entre aspas ao dar uma opinião, esperando uma resposta. Da calma extrema de pensar e agir nos momentos em que parece que um cano estourou ou que o mundo parece desabar. É da nitidez dos sentimentos e da clareza das palavras ditas de forma pausada, quase soletradas. É disso que se lembra. É da mania paulistana de, às vezes, comer os "plurais". Ao inferno com as concordâncias verbais, devoradas pelo hábito, se o que importa é o sentido. É disso que se lembra. É de estar presente e tranquila quando para ele o mundo travava. Ou de não se importar muito com isso. Ou só dizer com doçura "anda direito homem" [e aquilo ter o efeito de uma ordem divina]. Ou fazer piada e rir de "seu ratinho" a caminhar... psssspsss  É disso que sempre se lembra. É da felicidade de receber flores e um vidro de temperos. E do olhar iluminado ao comentar sobre viagens que gostaria de fazer? [pena que se quer deu tempo de planejá-las]. É das sessões de cinemas luxuosos, onde dois filmes aconteciam, um na tela e outro no sofá da sala de projeção, marotos no escurinho. É disso que se lembra. Do perdão, às vezes demorado e estridente, por desapontamentos. É disso que se lembra. É do passeio de bicicleta que virou uma corrida contra o relógio atrás da cria em desenfreada carreira no parque. É do sorvete que ele sonhava que gostaria, mas que ela não gostou tanto. E do "tá bom", quando concordava discordando. É de repetir o nome dele soletrado e com entonação, antes de falar de algo importante, para o qual queria chamar a atenção. De fazer comida com gosto para agradar o paladar de outros. É disso que se lembra. É de fazer [de vez em quando] troça de coisas sérias. Rir do que supostamente não se podia [ou pode] rir. Não por maldade, não dos outros, mas de si mesmo. De trajar um vestido ao contrário por achar mais bonito assim e pronto. É disso que se lembra. Da habilidade de contornar chatos e chatices com diplomacia. De acordar tarde quando tinha dito que era preciso sair cedo para viajar. De quebrar regras, de repente, a moral e os bons costumes só como diversão boba, e rir disso. É disso que se lembra. De bilhetes saudosos, ou recados digitais como "ai, que vontade de morder" ou "eu preciso te ver por motivo urgente"... De ficar molhada da chuva sem se importar ao receber flores em casa, quando tudo parecia perdido, jogado por terra, sob a pá de cal. É do último beijo que se lembra. Procura-se um sorriso largo e bonito. Procura-se a felicidade.
     É disso que aquele homem se lembra. De pequenos gestos diários. Não, não quer lembrar mais, quer voltar a viver. E a vida dá voltas. Mas tem volta? A vida [revira e] volta? E o ombro dele agora está vazio. Dá de ombros? Do que se lembra mais, sei lá! Repete: de vê-la receber, mezzo alegro mezzo andante, lembranças de viagem e um buquê de rosas à noite de um domingo ensopado no portão de casa [de novo, quando tudo parecia perdido, jogado por terra, sob uma pá de cal]. Outra vez, é do último beijo que se lembra. E não esquece jamais o gosto, agridoce.
      Discordâncias? Inúmeras, mas pouco importam agora. Não se vive delas, não se leva nada delas.

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terça-feira, 23 de agosto de 2016

DOCE CATIVEIRO



              Eram 9h da manhã de um domingo que começara ensolarado. O galo já havia cantado e o sino da igreja já dera várias badaladas. O rapaz mal acordara de uma noitada daquelas. Depois de bebericar e conversar horas a fio degustando bolinho de bacalhau com a mulher que gostava loucamente, foram para casa, onde se amaram como sempre. Da sintonia mágica, ironizavam: "Definitivamente, a gente não se entende!" Na casa da moça, ele já estava à vontade, como num recanto predileto, um descanso para o corpo e para a alma. Não por luxo, embora a casa fosse confortável, mas porque ali não sentia-se como as pessoas nascem e morrem [e muitas vezes vivem]: sozinhas. Ali estava ela inteira. E ele idem. Ali havia tantas carícias quanto confidências, tanto suor quanto sonhos. Ali a realidade ganhava novas dimensões e possibilidades. Ali se contornavam -- pelo menos no jorro dos pensamentos e na avalanche dos corpos -- os impedimentos. Ali, juntos, era como se a vida ganhasse mais energia. Pareciam dois adolescentes testando sabores novos e cores improváveis. Por isso, ele cortava a cidade sem vacilar, percorrendo 20 km, ora cansado ora triste com as condições, nem sempre favoráveis, que a vida lhe impunha. Por que ali até o silêncio era um sinal de alegria... Puft!
            De repente, um susto! Toca a campainha. No portão, está a mãe daquela moça madura, aos olhos dele exuberante e generosa. Como no cinema, ele pula da cama, pega as roupas e tudo que pudesse dedar a sua presença ali, vai para um dos quartos do sobrado sem dar um pio, em segundos. "Mas ela não tinha dito que jamais viria alguém de surpresa? Ainda mais tão cedo", pensa, enquanto a adrenalina percorre seu corpo. Passa 40 minutos cativo, sem quase se mexer, sem tossir, sem respirar forte, sem dar um espirro, sem um ruído.
           O que diria se aquela senhora subisse e, por acaso, ele acabasse de algum modo flagrado escondido trancado naquele cômodo como um adolescente assustado? "Me desculpe, amo sua filha, quero morar com ela, quero que seja a minha esposa!", imaginava, rindo por dentro diante da situação inusitada e inesperada. No fundo, até gostaria que assim fosse, mas não desse modo. Ainda não havia perdido de todo o juízo. Ou então, mesmo depois dos 40 anos, inventaria uma história da carochinha? "Bom dia, não é nada disso o que a senhora está pensando. Saímos ontem, passei mal e sua filha sugeriu que dormisse aqui" [só não saberia explicar por que aceitara a sugestão tão prontamente e de bom grado]. O rapaz tinha certeza de que a mentirinha não iria colar, mas pelo menos era uma saída honrosa, ainda que com um inevitável constrangimento. "Já estava indo embora, já estou melhor, bom dia, bom domingo..."
         Depois que tudo acabou, os namorados, aliviados, começaram a rir da surpreendente blitz materna. Para o rapaz , o "sequestro relâmpago" havia terminado. Eles não estavam mais em maus lençóis. Nunca estiveram...

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domingo, 21 de agosto de 2016

A ERUPÇÃO NO NATAL



A paixão é como um vulcão em erupção intensa. É a felicidade elevada à enésima potência. Ela exala "cheiro de alegria" e quem está ao redor percebe. Ela move aquele rapaz e aquela moça que se conheceram na cidade bruta, implacável, congestionada e que une e separa pessoas na velocidade da luz. Ali o fôlego da novidade gerara energia suficiente para a ilusão da infinitude do amor. Ela estava no trânsito na hora de pico voltando para casa eufórica com a descoberta, seduzida pelas conversas diárias com aquele que mexeria para sempre [nessa hora tudo é eterno] com a vida dela. Ele, já em casa, aguardado ansioso o contato com furacão Jane, apelido que deu àquela mulher que representava mais impulso ao seu "renascimento". Por uma fração de segundo, o rapaz lembrou da tradição de dar nomes femininos a furacões. Mais do que pertinente, afinal ela entrara como um vendaval na vida dele, varrendo parte de suas dores e lembranças do passado. Agora, os tempos verbais eram diferentes, presente e futuro. Além disso, Jane trazia à memória um seriado de TV que ele adorava na infância: Tarzan enfrentava e vencia, ao lado de sua mulher Jane, os perigos da selva. Eram 5h da tarde, ela -- bem distante e ao volante -- aciona então o sistema digital de conversas pelo celular e começa a teclar.

"Oieee... meu amor!"
"Oi, ocupada?"
"Oi, fala amore!"
"Oi, o check-in será às 14h do dia 24 e o check-out ao meio-dia do dia 25 [ele contava que tinha feito a reserva para uma 'loucura' proposta por ela]. Ou seja, podemos entrar às 14h para 'o esquenta' até as 17h, e voltar após a ceia de Natal para 'o abraço' (digitou kkkkk). Muita vontade de te ver... você está aí ou acabou a bateria? [do celular]. Ele estranhara pelo horário, eram 20h25.
"Oi, você acredita que acabou a gasolina do carro!?' [e ria e ria, engarrafada no tráfego ainda pesado]. Sem celular [também com a bateria arreada], ela pedira emprestado um aparelho a moço e chamara um rebocador para levar o veículo a um posto de reabastecimento. "Cheguei só agora em casa!"
"Onde parou?? kkkkkkk
"Na Ponte Cidade Universitária."
"Putzzz!!!"
"Nem me fale... Eu sempre peço para  completar [o tanque] e vou rodando... e a luz piscando [no painel, alertando sobre o fim do combustível]. Enfim, acabou, o nervosismo se foi. Nem posso falar disso na casa dos meus pais. Acho que já fiz umas 50 vezes [ela ri]. Meu pai fica puto da vida, Eu já nem conto, digo que me atrasei, que estava longe numa visita a trabalho [kkkkkk], senão é blábláblá."

Dois atos falhos em uma semana mostravam o quanto o novo amor, aquela paixão deliciosamente desenfreada, a deixara atordoada. Esquecera de encher o tanque do carro. Outro dia, não fosse um telefonema caseiro, teria esquecido a filha na escola [coisa que jamais faria]. O rapaz brincou, então, repetindo o que já dissera a irmã dela ao comentar seus estranhos e repentinos esquecimentos. "Você está apaixonada! Você está há 30 minutos falando dele e quase esqueceu a filha na escola!". Ele emendou. "Só você. É história para os netos", disse o rapaz, se apropriando de uma das frases prediletas de Jane para justificar algumas de suas sedutoras atitudes. "Ai amor, tenho preguiça de parar no posto e aí acontece isso. Depois eu fico nervosa comigo mesma. Mas tudo bem, já foi... Até a próxima [kkk]. "Meu amor, você tem certeza que quer continuar comigo?" [ela ri com intensidade, após o episódio da pane seca]. Ele, de bate-pronto, diz: "Por que não?"

"Onde você está? Vai dormir logo? Posso te chamar às 22h30? Vou comer algo, tomar um banho. Caso contrário, tudo bem, amanhã nos falamos", aliviou Jane. Eram 20h45.
Deu no relógio, 22h08, e o rapaz não se aguentou. "Oiiiiiii."
A resposta veio às 22h22. "Oi, amore, onde você está?"
"Aqui te esperando. Me liga, meu amor, sem pane seca!", disparou o rapaz, com singela ironia.
"Que foto é essa?", disse ela, reagindo a uma imagem que toma a tela do celular.
"Um teste, como não consegui apagar, enviei. É minha coxa direita" [kkk digita já deitado no leito].
"Você é maluquinho. Não dorme? [ele já tinha dormido sentado] Vou fazer  chocolate para a minha filha. Sério, me espere, volto em 10 minutos". São 22h52,]
"Dê-me um pouco de sua atenção", buáááá, brinca o rapaz.
"Darei, meu amor. Me espere, não durma, ouviu?" Já venho!"

Como uma lava de vulcão, o sangue ferve e revela o quanto a paixão tomara seu lado esquerdo do peito e também o quanto as emoções já dominavam seus pensamentos mais que imperfeitos. "Preciso te beijar correndo, sinto sua falta. É caso de Janetite aguda", escancara o rapaz. "Ohhh, não fala assim, que loucura!", afirma ela, repetindo, com carinho, dua vezes o nome daquele homem que bagunçara seu coreto nas últimas três semanas e meia de amor na máxima voltagem. Bate gongo das 23h: Por que me perguntou se quero ficar mesmo com você?" "Estava brincando, mas ainda está em tempo! [de desistir]. Ambos gargalham à distância.

Meados de novembro. E a conversa digital ganha contornos ligeiramente mais sérios, assim como mais de 50 tons de cinza. "Não virou o ano e ainda vamos fechar nosso caderno para balanço" {ela diz e ele ri]. "É uma boa época. Vamos ficar sem nos ver, você vai viajar com seu filho, na volta, sentamos e fechamos. O que acha?"  [ele envia um sorriso de novo, concordando]. "Já vamos estar  mais estruturados..." "E se a conta fechar, o que acontecerá?" Ela não titubeia: "Nos conhecendo melhor, mais amor, mais beijos, mais entregas". Ele segue o fluxo: " Mais, mais e mais loucuras, mais carinhos".

Jane então bota mais lenha na fogueira. "Sou muito reservada. Quem sabe começo a adquirir confiança, mais e mais". Ele, afoito, reage: "Aí começa a adquirir?""Não, amore, não me interprete errado. Confiança, mais confiança, você adquiri com o tempo! É isso, eu tenho que ter esse tempo. Lembra que te falei do conjunto?" "Do conjunto da obra?!" "Isso, meu amor, não estaria saindo com você, se você não estivesse me fazendo bem. Você é um cara legal, gosto de estar com você, de te beijar... Vamos nos dar o tempo de nos conhecer. Não quero alguém para uma semana, um mês". "Eu também". "Todo esse tempo, você já imaginou se realmente quisesse tirar uma onda? Olha quanto tempo perdido. Penso em tempo, sim, tenho 45 anos, não vou ficar com uma pessoa que não me agrega nada" "Claro que quando se gosta de verdade, você que 'para sempre'" [ele interrompe brevemente] "Sim, que seja eterno enquanto dure! Mas meu amor... tenho saudade e tenho sono [diz ela, rindo]. Aquele homem, romântico, então dá a sua nova noção de tempo: "Aos 58, o 'para sempre' e 'o eterno' são logo ali!" [ambos riem] "Esqueci, não parece. Para mim, você tem 40, meu amor". Antes de dormir, ele ainda diz: "O que me importa são todos os dias, parece louco, apressado, mas vivi assim. Vivo assim. entendeu?" "Não entendi!" "Espero ficar com você 10.000 dias desde que fique hoje, amanhã e depois". "E também na noite do dia 24", afirma ela, em tom claro de brincadeira. "A intensidade também me interessa, é isso" [ele arremata].

E Jane volta sugerir: "Vamos dormir?" "Dia 24 está pronto. Você leu o que escrevi sobre isso", insiste ele. "Sim", responde ela, sonolenta. "A noite de Natal vai ser na minha irmã e o 25, na minha mãe. Vou estar liberado à meia-noite. No 24, vou entrar no seu caderninho". "Com certeza, meu amor, mas vamos dormir?" "Vamos", enfim diz ele, e manda beijos "daqueles". "Nossos". Ela retribui e, num último suspiro, pergunta: "Neste domingo, a que horas você vai deixar seu filho?" [com a ex] "Às 20, como diz a lei", ironiza. "Não tem como levá-lo mais cedo?" "Vou ver. Quais são suas intenções? [kkkk maroto] "Amanhã, nos falamos". "Se não der [para vê-la] no sábado, vou garantir o domingo". Ela envia beijos digitais com um "está bom". "Eu te quero", digita o rapaz.

Na noite chuvosa e fria do Natal daquele ano, Jane e aquele homem se encontraram e passaram a madrugada em um hotel da zona sul da metrópole, após brindes com champanhe francês. Não abriram nem as cortinas das grandes janelas do quarto. Não olharam para o céu para saber se havia lua ou muitas estrelas. Só olharam para eles mesmos. Bastava. Um vulcão "apagado" acabara de explodir naquele momento, espirrando fogo de seu caldeirão em lavas.

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quarta-feira, 17 de agosto de 2016

COMO UM CUBO DE GELO




    De repente, ela começou a desdizer tudo o que já havia dito e fazer aquilo que não parecia capaz de fazer. De repente, o que era quente virou frio, o que era uma explosão de cores não passava de um preto e branco, o que era flex ficara duro, o que era calma agora apressava, o que fora tolerância pintava impaciência, o que era irrelevante ganhara importância, o que era notável causava indiferença, o que era acolhedor já se tornara inóspito, o que tinha valor por ser simples transformara-se em solução pobre, o que era soberba virara qualidade. O que tinha gosto de camarão agora mal cheirava arroz e feijão. Como um carvão em brasa se desmanchava assim como um cubo de gelo?

     De repente, tudo muito de repente. Tão de repente que parecia intencional. O que estivera cheio [de amor], assim da noite para o dia, era um imenso vazio. Por que aquilo que fazia sentido agora era incompreensível? Como palavras claras tornaram-se um dialeto inaudível. De repente, a surdez aguda. De repente, a rigidez sem apelação. Em vez afeto, desatenção e desdenho. Certa vez,  havia dito que se alguém gosta de alface e o outro de tomate e cebola, por que não servir salada de alface, com tomate e cebola? Por quê, por quê, se tudo antes era passível de conversa e o qual gesto ou palavra [ele não sabe bem o quê] agora tinha sido a gota d'água?

    Às vezes, então ele se pergunta, onde estará ela? [Ela quem?, você me pergunta?]. Aquela que o  roubou dele mesmo. Às vezes, indaga-se: onde estará ela, a outra? [Que outra? Lá vem você, minha consciência] Aquela que devolveu a alegria e permitiu a euforia àquele rapaz. Às vezes, ele acha que ela não existirá mais, que ela nunca existiu, na verdade. Às vezes, ela ainda parece estar tão perto... O que faltou para que essa novidade apagasse de vez aquela antiga [tristeza] com sua magia sorridente, sim, sem voltar para a "prateleira"? Ele se lembrou de Clarisse Lispector e o seu pessimismo sobre a condição humana: "Cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro".

   Vai uma caipirinha ou um dry martini? Por que ela voltou à "prateleira"? Amigos, o tempo dirá, na cor sépia? Se renascer é como sair do armário sem olhar para trás, como serão amigos? Ou essa "solução" só é mais uma terrível forma de dizer de adeus... até que a brisa sopre leve outra vez e tudo volte a ser possível. Tudo!

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sexta-feira, 12 de agosto de 2016

SOB A LUZ DAS BEGÔNIAS



As begônias vermelhas estão aí? Sim, respondeu ela, digitando. Ele festejou sem dizer uma palavra. Afinal, enquanto aquele oceano de cor viva estivesse lá, em um grande cesto, ao lado dos temperos, na bancada que separa a sala de jantar da cozinha da casa, seria como um relógio carinhoso do tempo a lembrá-la que nem o passar das horas a faria esquecer dele, dos energéticos e fogosos tempos juntos, embora sempre [diga-se de passagem] aquela mulher tivesse dificuldade em pronunciar tal palavra e conjugar o verbo, rigorosa demais com o significado das palavras. Dele, não havia dúvida, o amor. E as begônias diriam [diante dela, enquanto durasse a sua vermelhidão quase solar] que ele era seu amante, que estava ali cuidando dela. Amantes para sempre, era o bordão.

Para aquele homem, ela significava oxigênio, não dióxido de carbono. A presença dela o acalmava. A ausência, agora maior, transformava tudo em cansaço, como o escapamento dos carros, a respiração ficava ofegante. A separação por alguns dias já escancarava que aquele encontro na prateleira digital não tinha sido fortuito. Que aquele acaso, ocorrido há nove meses, era algo mais forte, como uma providência divina. Era algo que nenhum dos dois iria conseguir "matar", mesmo tentando usar o tempo como uma arma eficaz. [Afinal, dizem que o tempo cura tudo, deixa então o tempo levar, deixa o tempo apagar, deixa isso deixa aquilo.] Não, pensava alto: o tempo apenas envelhece e mata as pessoas. Não, não cura nada, mal cicatriza feridas. [Então, não vamos perder tempo?, sugeriu.]
Um dia lá atrás, na euforia do inesperado encontro e de longas e deliciosas conversas matinais [ela ao volante rumo ao trabalho e ele, ainda deitado, acordando de suas insônias], ela disse, rindo: "Me segue que você brilha. No final tudo vai dar certo". Agora como um filme passava pela cabeça dele... a cabeça dela em seu ombro, a alegria dos olhares, os beijos secos e molhados, também os doces e salgados, o silêncio da cumplicidade, as viagens quase às escondidas, os segredos revelados, as vontades partilhadas, as loucuras bem vividas, as diferenças conhecidas, o grampo do motel, a embriaguez anestesiante dos bares, até mesmo as estridências sagitarianas.... Ninguém apaga o que a vida te dá como uma benção dos deuses, sob o risco de perder o viço.

As begônias vermelhas estão aí? Sim, então ainda há uma chance de sentir-la [mesmo à distância] como um sol tão perto. Mesmo quando ela ergue fronteiras que impedem aquele abraço fio-terra, gostoso, relaxante. As begônias vermelhas estão aí? Sim, para mostrar que ele te segue e vê seu brilho, a luz interminável daquela mulher. Ele segue, mesmo ferido sem entender muito bem o porquê [se ela não pode ficar 15 dias sem vê-lo, pode ficar sem vê-lo para sempre?]. As begônias vermelhas estão aí? Sim? Ele se recusa a calar e a aceitar a sombra que ausência dela vai deixando nas coisas.  

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domingo, 7 de agosto de 2016

A MULHER QUE NUNCA VIU O BRUXO


Não sei porque ele me inspira. Nem mesmo sei se vou enviar esta carta. Claro que se esse bruxo enviar notícias de tão longe... receberá. Estou com saudades, sabia? Ele disse que ligaria antes de ir e eu, boba, acreditei. Será que é isso que tentou me dizer com "alma liberada"? Saí com uma amiga, descontraí, esqueci o trabalho, lembrei-me dele. Olho para aquela foto, onde um sorriso cativante, másculo e desleixado me enfeitiçou (suspiros). Ah, bruxo abissal, o que faço para quebrar o encanto? O que me admira é que nem o conheço pessoalmente. Adoro dançar, gosta? Fico viajando, será que um dia vou vê-lo, tocá-lo? Também não quero saber agora... só quero sentir a sensação maravilhosa que explode quando penso nele, ativa minha alegria, meu lado brincalhão, coisa que adoro.

Como posso sentir amor assim? Parece tudo uma enganação. Mas não com ele. Qual é a mágica? Ele nem sabe dos meus pensamentos profanos, mas me imagino sendo dele, simplesmente mulher. Penso tolices com ele. Já sei que estou fora, que me excluiu, mas espero que ele guarde isso como uma confidência, isso se eu enviar mesmo esta carta revelando minhas perdas e danos. O que mais me intriga é que outros homens me abordam e eu insisto nele, o bruxo abissal. A memória só o traz à mente, ele, o homem que foi embora! Preciso quebrar esse encanto, preciso conhecê-lo. imagino ser essa solução. Caso ele não queira me ver ao vivo, fico imaginando..."quem sabe, podemos negociar!".

Os meus olhos se fecham... Exausta, acordo para a realidade: um amigo internauta, fazendeiro bem-sucedido, pensou que podia rolar algo entre nós. Saímos, mas travei. Penso nele, de novo, o internauta bruxo. Outro dia andei conversando com alguém na rede, um tal de Feiticeiro. Não foi como com ele, aquele dos beijos virtuais molhados [Como eu sei que eram? Ah, eu sei...] e da voz rouca no arquivo de mensagem sonora. Sei que ele está desconectado em Sommerville, um subúrbio de Boston. E eu aqui de Porto Alegre, a "garota minuano", ainda tento uma conexão improvável com o bruxo. Eu me perdi.



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terça-feira, 26 de abril de 2016

LIÇÃO SUECA, E UMA PERGUNTA CARIOCA

           
Estocolmo: prioridades cancelam evento para 2022
        Depois de apresentar sua candidatura em novembro de 2013, a cidade de Estocolmo, na Suécia, decidiu voltar atrás e não participar da disputa pela sede dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022. O motivo? Segundo o jornal "Dagens Nyheter", a prefeitura concluiu --- após colocar no papel todos os gastos que o evento esportivo traria para a cidade -- que a conta para organizar os Jogos seria alta demais e um eventual prejuízo teria de ser coberto com dinheiro públicoTalvez em outros países usar dinheiro do contribuinte para realizar grandes eventos esportivos não seja problema. Mas na Suécia é diferente. “Não posso recomendar à Assembleia Municipal que dê prioridade à realização de um evento olímpico, se temos outras necessidades na cidade, como a construção de mais moradias”, disse o prefeito Sten Nordin. O secretário municipal de Meio Ambiente de Estocolmo, Per Ankersjö, escreveu um artigo defendendo a decisão. "Os cidadãos que pagam impostos exigem de seus políticos mais do que previsões otimistas e boas intuições [sobre o orçamento]. Não é possível conciliar um projeto de sediar os Jogos com as prioridades em termos de habitação, desenvolvimento e previdência social", afirmou.
Rio: ciclovia superfaturada é destruída pelo mar
    
        Enquanto aqui o prefeitura do Rio de Janeiro deu várias alegações para explicar o inexplicável, antes da Olimpíada. Por que a promessa de despoluir a Baia de Guanabara e a Lagoa Rodrigo de Freitas não sairá do papel? Por que um trecho da ciclovia Ipanema-São Conrado foi erguido e arrancado dos pilares pelo mar, matando duas pessoas, justamente numa área conhecida por todos por ter fortes ondas [em dia de ressaca, elas se chocam com o costão com violência]? A ciclovia, superfaturada, custou R$ 45 milhões e seria "um legado olímpico". A pergunta que não quer calar: afinal: por que uma cidade precisa de um evento desse porte para fazer o que deve ser feito. O tal "legado" não seria uma mera obrigação dos administradores públicos, mesmo sem Olimpíada?  
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sábado, 30 de janeiro de 2016

O GUARDA-CHUVA



        Era a primeira vez que se viam frente a frente. E foi um desastre. Ela não gostava daquela comida francesa. O bistrô, escolhido por ele a dedo por considerar o lugar ideal para um jantar romântico, só servia pratos de caça. Constrangido, o rapaz tentava contornar a situação. Já havia pedido um bom vinho de mesa. Nada parecia engrenar, exceto o desejo de conhecer aquela mulher com quem conversara horas a fio pelo whatsapp, esse vício moderno, durante dias, ao estilo nunca te vi sempre te amei. Era tarde e o rapaz, vacilante, decidiu ficar ali, não tentar outro restaurante. Ele ainda encomendou uma torta de queijo, ao vê-la beber vinho tinto sem colocar na boca um pedaço sequer de pão. Embora o encontro tenha se sustentado por minutos de conversa divertida, aguda, estava resignado com o ''não-jantar". Já se dava como abatido pela mesa errada, pela escolha infeliz.
     
        Recém-solitários, os dois falavam sobre viver o momento, sem que isso significasse abandonar sonhos e desejos futuros. E como viviam isso, não só da boca pra fora, como acontece com muita gente que costuma alardear tal comportamento como qualidade adquirida ao longo da vida.  Até que a mulher pediu licença e se levantou para ir ao banheiro. O rapaz percebeu que não estava bem. Pediu a conta e pagou-a enquanto a moça tentava se recompor. Quando saiu do restaurante, abriu o guarda-chuva porque chovia, pouco. Mas chovia. Levou-a, preocupado, até o carro. No caminho de volta, tentou socorrê-la com drogas, até parou numa farmácia, mas o que resolveu mesmo foi meia lata de coca-cola com paçoca. De volta à sua casa, entristecido, pensou: amanhã é tempo de pedir desculpas, educadamente lamentar, colocar a roupa de domingo e esquecer. Mais uma noite de luto viria.

       No dia seguinte, ele campeão de fiascos das primeiras noites, como ele se definia após tantos e sucessivos fracassos no primeiro encontro, foi surpreendido. Ela dizia que queria vê-lo de novo pela sua autenticidade, pelo seu jeito meio destrambelhado de ser, que a mulher não sabia ser resultante de uma deficiência [ainda que naqueles dias quase invisível] e pelo guarda-chuva. Sim, [ela revelaria mais tarde] aquele objeto antigo e quase obsoleto que ele levara e que -- meio atrapalhado ao entregar o carro ao manobrista ao chegar-- abrira para proteger aquela mulher das poucas gotas de água que começavam a cair naquela noite de casal debutante. Se a primeira noite para aquele  homem havia deixado a sensação do sabor amargo de um cabo de guarda-chuva, o mesmo guarda-chuva guardava outro gosto para aquela moça alta -- e, aos olhos daquele homem, de uma beleza singular. O gesto de abrir e fechar o guarda-chuva, uma atitude espontânea e despercebida pelo rapaz, tinha tido o peso de uma sentença judicial, sem direito a apelação, para a moça. Sim, nada tinha dado certo, mas o uso do guarda-chuva, ainda que exagerado para o momento -- porque até o toró fôra só uma tenra ameaça -- ganhou um significado único para aquela mulher: o gesto de quem cuida.

      Daí seguiram-se novos encontros dos debutantes e seguidas noites ferozes, nascidas de um amor que foi se nutrindo e se expandido, pelas semelhanças e também pelas diferenças inúmeras, na contramão desses tempos de cólera, indelicadezas e descuidos ilimitados s/a.

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sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

O RESUMO DA ÓPERA - SEMPRE ÀS QUINTAS

UMA LEITURA SEMANAL DOS JORNAIS -  N12 -- 28.01.2016

POR GEORGE ALONSO


Em manchete a mentira do governo Geraldo Alckmin

Jornalismo zero e zero em matemática

        A “Folha” errou? Viral na rede, a informação de que a manchete da "Folha" escondeu a verdade sobre a taxa de homicídios no Estado de São Paulo. Pela metodologia da Secretaria de Segurança, uma chacina é considerada UMA morte nas estatísticas, mesmo que tenham sido assassinadas cinco, seis, sete, oito, dez pessoas. A taxa também não considera latrocínio (roubo seguido de morte) como homicídio. Como latrocínio e assassinato cometido por PM não são considerados “homicídios dolosos”, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes caiu para 8,73. Do contrário, subiria para 11,7 para cada 100 mil habitantes. Acima de 10, a taxa é considerada “epidêmica” pela ONU.

       Conclusão: bem torturados, os números podem dizer qualquer coisa!

       E mais: a UOL publicou como verdadeira uma piada sobre o motivo da falta de pasta de dente na Venezuela: os venezuelanos estariam escovando demais os dentes, três vezes ao dia. [não há dúvida sobre o caos econômico do país vizinho, mas copiar e usar como verdadeiro uma piada de um site daquele país... Sem comentários.]

Jogo de cena

      "Não posso continuar em um partido que tomou mais de R$ 300 milhões da Petrobras", afirmou o apresentador de TV José Luiz Datena, ao anunciar que vai sair do PP. A desistência, em meados janeiro, se deu um dia depois de o jornal "O Estado de S. Paulo" publicar reportagem que mostrou que a Procuradoria Geral da República estimou em R$ 358 milhões o total de propinas obtidas pelo PP, entre de 2006 e 2014, no esquema de assalto à Petrobras. Ele também lá não estava disposto a enfrentar Paulo Maluf em eventual prévia do partido para a disputa do cargo de prefeito paulistano. "Jamais disputaria uma prévia eleitoral com Maluf. Preferia uma disputa com Marcola", ironizou Datena [Marcos Herbas Camacho, chefão do PCC, facção do crime organizado].

      Puro jogo de cena: o PP sempre teve Maluf e sempre esteve acusado de se envolver em casos de corrupção... E Datena não sabia?  Ah, tá!

O troféu

Faixa abandonado no "protesto" contra a democracia

       Enquanto não pegarem Lula, não vão sossegar... Ele é o alvo. Dilma é apenas um pretexto. O objetivo é destruir o PT e se puder com a foto do ex-presidente, na capa de todos os jornais, algemado..A investigação da Operação Lava-Jato, notável esforço anticorrupção, pode servir para ferir de morte a democracia. Eu já vi esse filme... Ele se passou em 1964. O que faziam na última terça-feira na Marginal Pinheiros, na pista local entre as pontes Cidade Jardim e Eusébio Matoso (sentido Castello Branco), 14 pessoas [exatas 14] com uma gigante bandeira verde e amarela, em forma de faixa, paralisando o trânsito, durante quase todo o dia, com gritos contra Lula e Dilma. A PM do Alckmin não apareceu... Ah, se fossem estudantes! E ainda ontem havia uma lembrança do "protesto" no canteiro central. Uma faixa pendurada numa árvore [foto acima], com o seguinte dizer: "Comunismo, não!"  Não faltou, claro, pedir a volta dos militares ao poder.

Imprudência (?) e o direito à defesa

      O Ministério Público Federal afirmou na última segunda-feira (25), em audiência com o juiz Sergio Moro, que parte dos depoimentos prestados pelo lobista e delator Fernando Moura não foram gravados. O pedido para ter acesso a áudios e vídeos referentes a termos de delação premiada com informações cedidas pelo lobista foi feito pela defesa do ex-ministro José Dirceu. Após ouvir Moura dizer ao juiz Moro, na semana passada, que havia trechos nos termos de sua delação premiada que ele não falou no momento em que prestou o depoimento a Polícia Federal e a procuradores da Força Tarefa de Curitiba, o advogado Roberto Podval quis ter acesso ao material para "esclarecer o que foi dito".  O pedido não poderá ser atendido, segundo o despacho de Moro, já que o MPF disse não ter gravado os depoimentos solicitados pela defesa de Dirceu.  À "Folha", Podval afirmou que ainda não sabe qual medida tomará diante do fato de que os áudios não existem. Para os defensores, causou estranheza a ausência das gravações, já que o padrão da Lava-Jato é gravar os depoimentos dos delatores durante o processo de colaboração premiada.  O quadro esquemático abaixo foi publicado pela "Folha”:


NÃO É BEM ASSIM...
O que o delator Fernando Moura disse à PF e desdisse, agora, ao juiz Sergio Moro

ANTES
DEPOIS
A FUGAEm 2005, foi orientado pelo então ministro José Dirceu a sair do Brasil e ficar no exterior “até a poeira baixar”“Depois até que assinei [o depoimento] que eu fui ver, diz que o Zé Dirceu me orientou a isso. Não foi esse o caso.”
AJUDA DO AMIGO MINISTRODirceu o orientou a arrumar uma empresa e prometeu ajudá-lo em seus negócios. Foi quando indicou ao governo do PT, a pedido do dono da Etesco, o nome de Renato Duque para diretor da Petrobras“Não sei se a última palavra na indicação de Duque foi do José Dirceu”
A ETESCOMencionou arranjo entre a Etesco e Duque para que a empresa fechasse contratos milionários com a PetrobrasDisse não saber se a Etesco foi ajudada por Duque e afirmou: “Devem ter preenchido um pouquinho mais do que eu tinha falado. Mas se eu falei, eu concordo”
PADRINHO DE DUQUEDisse que Duque e os donos da Etesco “ficaram milionários” com os negócios na Petrobras, e que a Etesco também lucrava ao repassar contratos a outras empresasIndagado a respeito pelo juiz Moro, respondeu: “O Licínio [Machado, dono da empresa] já era [milionário], sempre foi”

OUTROS EPISÓDIOS
Não é a primeira vez que um delator muda sua versão

PAULO ROBERTO COSTA, ex-diretor da Petrobras
> Desvios na estatal: Primeiro, disse que a propina era obtida via Petrobras, em contratos superfaturados. Depois, que saía da margem  de lucro das empresas

> Renan Calheiros e Romero Jucá: Disse que os senadores recebiam propina, mas depois só citou reuniões com os políticos

ALBERTO YOUSSEF, doleiro
Aécio Neves: Disse que o tucano ganhou propina em Furnas no governo FHC. Depois, afirmou que só tinha ouvido falar que o senador tinha influência lá

NESTOR CERVERÓ, ex-diretor da Petrobras
Lula: Apontou propina para a campanha do ex-presidente, vinda da refinaria de Pasadena (EUA). A menção sumiu em seu termo de delação

AUGUSTO MENDONÇA, empresário
Renato Duque: Primeiro, disse que o ex-diretor recebeu US$ 6 mi. Depois, afirmou que ele não ficou com todo o dinheiro