Imagem do documentário "Garapa", primeiro filme de José Padilha após o sucesso de "Tropa de Elite" |
Há certas discussões que quase me recuso a fazer. Quando o tema é fome ou miséria não consigo economizar na defesa de quem precisa. Isso é simples. É como a Aids, que no início, uma moléstia desconhecida, era chamada de "doença gay", como uma acusação [culpa individual por "mal comportamento"] e, em consequência, um castigo dos deuses [na visão de terráqueos pobres de espírito]. Depois quando esse preconceito foi "vencido" pela realidade, outro preconceito colou, agora contra os doentes, abandonados à própria sorte [no caso de vacilo na prevenção] ou infortúnio [no caso de transfusões de sangue sem controle]. Por vezes, a ignorância de familiares, parentes e supostos amigos venceu, pacientes foram esquecidos e ficaram solitários vivos no leito de morte.
A maior diferença entre a Aids e a fome é que para a Aids hoje há um coquetel de remédios que melhorou muito a qualidade de vida e deu longevidade a quem tem o vírus. Já a endemia da fome, porém, "sem laboratórios interessados em fabricar medicamentos" [porque o sistema que produz excedentes não produz governos decentes], continua matando muita gente no mundo e no Brasil. A fome é como uma doença invisível, que pode estar ao seu lado sem que você a perceba. Ao contrário do imaginário "cruel" de alguns e ingênuo de outros, ela e a subnutrição não são tão evidentes como fazem crer fotografias africanas [como se só o visível fosse real]. Pior, a fome para muita gente não lhes diz respeito e, incrível, a causa [acreditam] parece ser de quem a tem. Será que pensariam o mesmo depois de se defrontarem com ela?
O que vou escrever a seguir, para muitos, pode ser chamado de vício paternalista. Mas não é. Não se trata da defesa do assistencialismo ou da esmola [que como diz o verso cantado por Luiz Gonzaga, o rei dos oito baixos e rei do baião, "ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão"]. Até porque a esmola é uma espécie de controle social [como mostra o coronelismo no Nordeste]. Por isso, embora às vezes ceda a pedidos em cenas comoventes, dar esmola me incomoda bastante. Mas viajando a passeio pelo interiorzão do Brasil, levei choques inesperados de realidade. Aprendi que a fome desespera, humilha e mata. Por isso, sempre que posso, jamais recuso pagar um prato de comida a quem me pede. Antes que alguém diga "isso também vicia", conto três episódios que vivi em momentos diferentes da minha vida.
Um zero pelo Brasil
Estudante secundarista, juntei mesada, fiz bicos, vendi objetos e parti com mais dois amigos, mochila às costas, para mais um giro de dois meses pelo Nordeste. Foram sete giros ao todo nos anos 1970, de ônibus, barco, carona, de pensão em pensão, caminhando, dormindo no chão, em cama sem colchão ou em rede, com lençol ou de roupa, sentado ou em pé, e comendo onde dava. Compras? Quase nada, só o que os olhos podiam "comprar" e a memória gravar. Sem câmeras fotográficas. O dinheiro era curto demais e nada que fizesse peso ou tivesse muito valor entrava na mochila.
Palácio do governo capixaba: "Podemos entrar?" |
Vapor do São Francisco: 10 dias rumo ao sul, 5 ao norte |
Sim, éramos de "Supaulo", com sempre respondiámos à pergunta sobre a origem dos três cabeludos, jovens, sujos e curiosos. "Vocês são 'ripis' de Supaulo, né? Um dia, vou a Supaulo", indagou e imediatamente respondeu uma garota que nos servia um guizado de almoço em Caruaru (PE), cidade de famosa por sua eterna feira de rua, onde rimos muito ao ver o nome de uma loja: "Casa do Chapéu". Enfim, tínhamos chegado à casa do chapéu!
Enfim, "na casa do chapéu" |
Não à "garapa"!
Em 1978, uma nova viagem, "Em linha reta pelo norte": incluiu São Luis, Alcântara (MA), Belém e Manaus. Em Alcântara, onde fiz amizade com filho de pescador de camarão, a família do garoto não nos cansou de presentear com almoços seguidos de camarão seco ao sol com arroz. Já no gigante barco da Enasa, que fazia a ligação Belém-Manaus, aconteceu outra cena de filme em pleno rio Amazonas. De manhã bem cedinho, nos primeiros raios de sol, ouvi gritos vindos da selva. Eram os ribeirinhos remando de suas palafitas e recolhendo as "oferendas". Os passageiros do barco jogavam maços de cigarro, pastas de dente e escovas embalados em sacos plásticos cheios de ar, calças, camisas, camisetas, calções, bermudas, comida, tudo que pudesse boiar. O gesto solidário, costume local, me impressionou e tratei de jogar uma camiseta também e fiquei acompanhando-a nas águas para ter a certeza de que o canoeiro recolhera a minha oferta.
Para voltar para casa, viemos de São Luis para Brasília, três dias de ônibus, que quebrou e precisou ser trocado no caminho. Então, ficamos na estrada por quase quatro horas, o que fez acabar nosso "dindin". Aí, senti a fome na carne. Depois de dois dias, eu era magricelo, sentia doer o estômago e não podia ver um pacote de bolacha. Meu olhar era uma lente de aumento. Meu amigo, mais parrudo, com gordura a queimar, nada, não se incomodava. Ria da situação e quanto mais eu reclamava mais ele ria. Fui ficando cada vez mais irritado e ele, de amigo, já começara a parecer "inimigo". "Você está com vergonha de pedir comida!", cheguei a dizer, tentando convencê-lo a fazer algo. O que só veio a acontecer quando a fome passou a doer nele também.
No dia seguinte à noite, ele desceu do ônibus foi ao banheiro, enquanto eu caminhei resoluto para o restaurante da parada. Vi uma família, deixando a mesa, pai, mãe e dois filhos. Não hesitei: "Posso comer?". A mãe me olhou e deve ter visto a cara da fome: "Pode! Olha, meu marido nem tocou naquele frango", salientou ela, apontado para o prato dele. Sentei-me ligeiro e comecei a atacar as travessas de arroz, feijão, batata e o tal frango. O meu amigo chegou antes que a garçonete pudesse intervir e recolher os pratos. "Não, vocês não podem comer, têm que pagar!". "Podemos, sim, ela autorizou!", grunhi, apontando para a família que já saía do estabelecimento. "Sim", confirmou a mãe, que voltou ao perceber o zunzunzum. A garçonete foi até o caixa e o gerente -- vendo a situação e talvez com receio de um escândalo -- aceitou o ação dos dois cabeludos famintos. Um alívio até Brasília, onde moravam parentes do meu amigo.
Por fim, em 1986, fazendo uma reportagem sobre moradores de viadutos e pontes, paramos com o carro da "Folha" sob o Viaduto Antártica, na Barra Funda, São Paulo. Uma família com quatro crianças estava ali há alguns dias. Eu e fotógrafo nos aproximávamos quando o pai, ergueu um facão. "Se tirar foto, mato vocês! Estou aqui há cinco dias, deu tudo errado, estou voltando para a minha terra amanhã!", gritou ele, com sotaque sulista. Nem tentei argumentar. Claro, senti medo. Mas a atitude tão digna daquele homem em defesa de sua família também virou uma fotografia que está sempre fresca na minha memória.
Por isso, me pareceu forte o suficiente a frase "Aprendi que pode ser uma grande experiência tomar água gelada", dita em entrevista pela socióloga Walquiria Leão Rego, co-autora de um livro recém-lançado sobre o efeito do Bolsa Família, que atende 50 milhões de brasileiros, nos rincões do país. Fome zero, sim! Não à "garapa!". "Garapa" é o nome do documentário feito por José Padilha, diretor do filme "Tropa de Elite", que durante quatro semanas registrou, de forma crua, sem sociologuês, o cotidiano de famílias em áreas remotas do Nordeste. Lá "garapa" não é o suco da cana-de-açúcar. É como chamam a mistura de água com açúcar aquecida, que é dada muitas vezes como alimento para enganar o estômago e obter energia durante os dias de seca e inanição.
Você ainda está por aí?
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