domingo, 25 de outubro de 2015

A LEI NA LATA DO LIXO


        
          Cumpra-se a lei, que lei? Cerca de 300 municípios brasileiros [6% do total de 5.570] recebem quase 50% do lixo que é produzido em todo o país. A Lei dos Resíduos Sólidos, que previa até 2014 uma destinação adequada aos lixões, não foi cumprida por 60% dos municípios. “Os resíduos sólidos deveriam ser vistos como um dos problemas mais sérios da vida moderna do país, por suas conseqüências ambientais e de saúde pública. O manejo e a disposição inadequada do lixo são uma ameaça à população e à sobrevivência de ecossistemas. A preocupação com os resíduos é universal”, afirmava a então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, ao enviar para a apreciação do presidente Lula, em 4 de julho de 2007 , o projeto de lei que instituiria a política nacional de resíduos sólidos. No entanto, o que se vê hoje é um “apagão do lixo” rondando as cidades brasileiras.

          Levantamento recente da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), publicado pela "Folha", revela que 235 municípios despejam seu lixo a quilômetros de distância, em aterros particulares de empresas de saneamento de outras cidades. Iguape, por exemplo, leva todo o lixo recolhido na porta das casas de seus 30 mil habitantes para a Grande SP – os sacos “viajam” 218 quilômetros pela rodovia Régis Bittencourt. Segundo o estudo da Cetesb, outras dez cidades paulistas enviam seu lixo para aterros públicos de municípios vizinhos. O motivo: segundo especialistas, por falta de recursos, a maioria das cidades brasileiras prefere terceirizar o serviço [da coleta ao descarte] a investir em aterros ou locais adequados. Ou seja, produzir lixo é fácil, mas custa caro descartá-lo de modo a não poluir rios ou prejudicar ecossistemas. E, quanto mais lixo se produz, mais caro fica para dar um fim adequado. [Uma ressalva: o fato de o lixo “viajar” ainda é melhor do que ser despejado em local impróprio a céu aberto.]

        Aprovada em 2010, a lei que cria a política nacional para resíduos sólidos determinou que até meados do ano passado os lixões seriam extintos. O que é o lixão? É um espaço a céu aberto sem proteção do solo, onde o lixo é depositado e disputado por urubus e catadores em busca de qualquer trocado para sobreviver. Em julho deste ano, atendendo a apelo de prefeitos, o Senado aprovou a prorrogação do prazo para 2021. Em São Paulo, muitas cidades fecharam seus lixões depois de ações judiciais e optaram pela terceirização. Ainda assim, no Estado mais rico do país, 27 cidades pelo menos despejam seu lixo em áreas impróprias. A decisão do Senado não só prejudica o avanço do país nessa área vital, como joga na lata do lixo o império das leis. Vale aquela velha máxima nacional: se existe lei, é para ser descumprida. A lei da postergação tornou-se um vício.
        
         Os chamados lixões são uma ameaça à saúde pública. Além de provocar odores ruins no entorno e ser um criadouro de pragas e insetos, o lixão gera o “chorume” – líquido tóxico resultante da decomposição dos rejeitos – que pode se infiltrar no terreno e contaminar o lençol freático. O melhor seria criar aterros sanitários com impermeabilização do solo, captação do “chorume” e controle dos gases produzidos. Melhor ainda se houvesse coleta seletiva, reciclagem e produção de gás metano proveniente do lixo residual, por exemplo.

         A alegação para o adiamento do fim dos lixões é a mesma de sempre. Que os municípios, além da falta de verbas e estrutura, não têm quadros técnicos nem qualificação teórica para elaborar os exigidos planos de gestão dos resíduos sólidos, que incluem lixo doméstico, lixo comercial, lixo industrial, lixo hospitalar e lixos especiais -- que precisam de locais apropriados para o despejo, ou mesmo a devolução ao fabricante [que faria o “descarte responsável”]. Qual a alegação que será dada em 2021 por quem não se planejar até lá? O Senado prorrogou o prazo para julho de 2018 [para capitais e regiões metropolitanas] e julho de 2021 [cidades com menos de 50 mil habitantes]. Ou seja, a festa do bicentenário da Independência pode ter o selo da incompetência de 200 anos para resolver uma das questões básicas do saneamento: coleta e destinação do lixo.

      O Ministério do Meio Ambiente calcula que existam cerca de 3.000 lixões ativos no Brasil, onde são despejados quase 50% do lixo produzido. Segundo estimativa do governo, há 800 mil catadores que vivem da renda obtida nos lixões do país. A questão do destino do lixo é uma questão civilizatória, diretamente ligada a hábitos e à educação. Por isso, há quem ache que a meta imposta pela lei era muito ambiciosa. Com a situação financeira precária dos municípios brasileiros, a maioria deles dependente de verbas federais em várias áreas, há quem questione até o novo prazo dado pelo Senado [o novo limite está à espera de votação na Câmara dos Deputados].  “Se não conseguimos acabar com os lixões nos últimos cinco anos, por que conseguiríamos nos próximos cinco?”, indaga um empresário do setor, lembrando que o país entrou em recessão e não vive mais sob a euforia econômica dos anos Lula [2003-2010]. “Talvez, nem em 50 anos conseguiremos acabar com os lixões”, chegou a afirmar, pessimista, Albino Rodriguez Alvarez, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), especialista e autor de um estudo sobre o tema. Nem a criação de consórcios intermunicipais públicos para a coleta e o despejo do lixo de forma a não agredir o meio ambiente e colocar em risco a saúde das populações parece viável economicamente sem apoio federal, embora haja uma redução dos custos.

      A produção de lixo diária é volumosa. Para se ter uma idéia, por exemplo, de como a reciclagem é importante na coleta, só na Grande SP, são descartadas por dia 34 milhões de bitucas de cigarro. E só uma pequena parte é reciclada, segundo a ONG Rede Papel Bituca. A entidade já reciclou 6 milhões de pontas de cigarro em três anos, com apoio da Universidade de Brasília. As bitucas viraram papel. Outro projeto com bitucas transforma o acetato de celulose das pontas de cigarro em adubo para grama e há quem diga ainda que as bitucas podem substituir a queima de carvão vegetal em fornos industriais. O uso desse exemplo, que pode gerar críticas entre os antitabagistas e ex-fumantes, é interessante para mostrar que até um mal pode fazer o bem. Imagine o mesmo com outros objetos maiores, mais saudáveis e menos poluentes.

       Você sabia também que transformar lixo orgânico em algo produtivo reduz a quantidade de gases tóxicos lançados na atmosfera e ainda gera energia? Isso já ocorre com usinas de metano que funcionam na capital paulista. Até 2007, 25% das emissões de gases de efeito estufa de São Paulo vinham dos aterros Bandeirantes, ativo de 1979 a 2006 [e o maior da América Latina], e São João, que funcionou de 1992 a 2007.  Hoje, o gás metano (21 vezes mais nocivo que o CO2) liberado pelos dois lixões é usado para gerar energia elétrica, após acordo com a prefeitura. Os dois locais acumularam juntos 64 milhões de toneladas de lixo. O gás metano gerado por essa biomassa é queimado e transformado em energia  que abastece 800 mil pessoas e ainda reduziu em 20% as emissões na cidade.  Ou seja, o lixo pode até ajudar a reduzir a poluição do ar e o aquecimento global. E mais: o lixo pode gerar luxo, que é a energia elétrica.

        Quando o assunto é resíduo sólido é fundamental, portanto, considerar o conceito dos 3Rs: reduzir, reutilizar e reciclar. Porque manejado de forma correta, o lixo pode ganhar valor comercial e ser usado como nova matéria-prima ou novo insumo, sendo incorporado outra vez a cadeias produtivas em  3Ss: de forma sucessiva, sistêmica e sustentável. Será que é muita ambição mesmo? E sem essa ambição, onde estaríamos? Se hoje o país está bem longe da meta, onde estaríamos se nem a lei dos resíduos sólidos existisse?
   
       
[se gostou, compartilhe ou dê "share"]



          

   

Nenhum comentário:

Postar um comentário